quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

PORTIMÃO (Reedição)

Philip Glass rasga-me um Grand Canyon
nas fissuras dos dedos, impressas no frio.
Aconselharam-me um creme gordo
para a vida gretada.
E surge-me o Guadiana,
que engorda a olhos vistos,
ladeando a planície trigueira.
Desagua no maior lago da península,
ali pr'os lados de Marrocos.
Sou um mouro, transfigurado é certo: polido.
Não como o Aleixo,
que tinha mãos ásperas da poesia.
Este livro... construo-o sobre as ruínas
dos pesqueiros sorvidos,
do Arade cansado,
dos seus suores de maré baixa.
A ponte ergue-se sobre o rio,
como a tal torre em Paris:
feita do mesmo aço rendilhado.
A Casa Inglesa invade-me os Natais,
onde o jogo de xadrez me permite
o sacrifício das figuras com peões solitários.
Talhos de sal esquartelados no leito
dessa terra húmida, sulfúrea.
Terra de sóis.
Eu vivi aqui neste canto do barlavento,
ninguém falava a mesma língua.
Entreguei-me à babilónia,
sinto-me em casa em qualquer lado.
Mas o sul é o meu lar, o meu mar,
a minha raiz nua de figueira,
lambendo a terra.

in Paisagens de Papel
Caldas da Rainha, Setembro de 2009

quinta-feira, 25 de novembro de 2010

Herberto Helder

Retirado daqui:
Fernando Dinis: É possível ouvir isto sem comoção?

ARQUIPÉLAGO

Abre o corpo todo,
abre-te, como uma flor
sobre o oceano pálido.
Pousa o ventre
no leito volátil,
veloz.
Como sexo ornado
de morte: virás.
No precipício do tempo,
virás na vertigem,
o teu cabelo escrito,
em palavras emaranhadas,
ponte pensil elevando-se,
desenha a passagem,
desenha-te.
As pernas são pilares,
ancas perfumadas.
Ao centro do ventre: o vulcão.

terça-feira, 9 de novembro de 2010

LAR

Todos querem uma casa,
um abrigo onde aquecer
os ossos, alguns compartimentos,
água corrente e um computador
que nos prenda ao resto do mundo,
em noites frias.

E eu, que ao entrar em casa,
é como regressar ao cárcere,
entro ordeiramente como
um condenado.

A minha casa é um livro de capa dura,
que me acompanha nos dias
mais chuvosos, com janelas macias,
de palavras macias,
cobertas de lágrimas de uma chuva
copiosa e persistente.
Nesta casa serei feliz.

Mas afinal estou aqui, só,
o livro entreaberto, de janelas batendo
na madeira do tempo,
e eu chuvoso e frio, como um qualquer
inverno, puxo o sobretudo sobre
as orelhas e vagueio, como sempre
tenho feito, à procura de abrigo.

Tokyo em Lisboa

0:30 de sábado. Depois da corrida vertiginosa, o táxi deteve-se no Cais do Sodré. Descemos ao cais como lobos famintos de ritmo. O corpo possuído por todos os impulsos eléctricos da noite. As garras prestes a florir. As quatro raparigas ondulavam na sala de dança do “Tokyo Bar” como borboletas. O espaço, de paredes nuas, quase lúgubres, ficou algures suspenso dos anos oitenta do século passado. O fumo insufla-se na roupa, na pele, no suor que o ritmo segrega: Electricity, OMD; Girls on film, Duran Duran; I Ran (so far away), Flock of Seagulls; Start me up, Rolling Stones; Video killed the radio star, The Buggles; ecoavam na sala como se de uma única banda sonora se tratasse. Uma bola de espelhos rodopiava no tecto, caleidoscópica, os dançarinos de cervejas na mão, todo um universo de som e côr, como num sonho. O alcool ia desaguando na margem do rio em mais uma inevitável madrugada
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quinta-feira, 4 de novembro de 2010

RECOMEÇOS

O círculo aberto, cratera de peito,
como cicatriz volta a fechar-se,
os teus olhos nos meus,
transportam uma possibilidade,
talvez um inconsequente brilho de lua,
em agosto,
quem sabe?
quem saberá?
quando em setembro te vir,
pela primeira vez,
que é, como concebo, o começo,
e as águas se alongarem em versos,
sem fundo ou leito conhecido,
arrastando essa possibilidade
na erosão dos dias imperfeitos,
uma possibilidade arrastada
de tronco aberto no peito,
e mãos sobre as mãos
e dedos rumorejantes.

Paulo da Ponte, Novembro 2010

PAINKILLER

Encontraste a tua posição zen.
Como um prolongamento de ti que
Te esticava as pernas alvas e macias
Pregadas como um sacrilégio.

Encontraste a tua posição zen.
Como um prolongamento de ti,
Os metais disfarçados de macios lençóis
Alongavam-te as pernas alvas e picantes
Como um sacrilégio que imitava o
Sudário. Blasfemaram-te roubando-te a imagem.
Pernas juntas de sexo na minha cabeça afastadas.
Os joelhos perturbantes a adivinharem
Os teus ossos sensíveis de menino magoado.
Dores? O teu corpo e a tua face repousam num
Opaco grito de luxúria e divertimento.
O encarnado doloroso dança à tua frente enquanto
Eu te como os braços com beijos e com os olhos e
Te afago a cabeça e pouso o meu
Corpo nas tuas pernas no meu consciente
Ultrajante e sujo...
Dores? Sim, dores. Imortalizo-te.
Tu não mereces o que te faço.
O azul celeste da tua alma e a palidez
Da tua pele imaculada de mártir
Consomem-se em comprimidos.
Eu queria dar-tos todos, sim todos.
A senhora da farmácia não deixou e chamou-me
Louca viciada. Quis pregar-me ao laboratório.
Apertei-lhe o pescoço. Quis que
Ela me suplicasse para parar.
Que maravilhoso meu anjo, muitos eu trouxe...
Todos para ti, para se
Dissolverem e evaporarem nos teus
Poros puros, penetrantes e
Pacíficos, posicionados para eu te ver melhor
Para ti, para ti...
Põe, põe, põe. Isso...assim,
Mais fundo, até as cores
Se misturarem. Estados Unidos?
Esquece Nova Iorque e a pobre da rua.
Eu queria ter levado tudo até
Ao fim
E ter feito tudo o que tu quisesses,
Para não teres de escrever as agulhas.
Lindo, que magnífico...eu mereço chicotes
E grilhões por me observares suja e
Empalada castrando-te os
Sonhos e não te matando a dor
Raios vermelhos em pentagonal sina
Me furem as fontes com a sabedoria
Ancestral para eu morrer e
Vitalizar-te.
Eu quero tudo de novo para voltar atrás
E teres o que queres e merecias porque
Eu fui feita, criada e concebida
Para ti, por ti. Finalizarei a minha tarefa
Quando te me e me te der.
Dores? Enterrra-me mais e mais
Fundo, mais celestial, mais infernal,
Mais divinal.
São muitos, toma-os e passa-me
A máquina alongadora de infinito. Vou deitar-me
A teu lado, amor. Levanta-te que as
Minhas pernas ficaram presas aqui.

Sofia Santos

in "Actéon nº 1" - Revista de Expressão pessoal e artística - Jan/Fev 2008, vários autores.

domingo, 17 de outubro de 2010

(...)

Dias a fio sem uma palavra, o silêncio imperioso dos corpos,
quando a pele se toca na pele, como um mapa de viagem
toca a manhã e se desprende uma aurora boreal,
o silêncio mortal das neves eternas, dos fiordes,
das savanas, as quilhas dos navios cruzando oceanos,
a tua pele de encontro à minha, ainda como estranhos,
somos estranhos íntimos de viagem, tacteando rotas
inseguras, somos o nascer do sol e o barco perdido,
a montanha de chumbo tecendo os dias frios nas fissuras
dos dedos, somos lençóis abandonados até que a noite regresse
para nos cobrir demoradamente de beijos.

segunda-feira, 4 de outubro de 2010

Outonal

Passeamos outono adentro como as árvores despidas,
ganha-se um tom de pele, viaja-se, só bilhete de ida,
tu olhas o ar, eu olho o mar, adereços inúteis presos
no horizonte, páginas escritas palavras em surdina,
sem mapa nem rumo certo como a rota dos pássaros,
estamos à deriva, como dantes, num grave acidente.

AS BALAS

São de ferro. Ou de aço?
Diz-se que fazem à entrada
um pequeno orifício,
seguido de uma grande
devastação de carnes
sangrentas. Por isso matam.
Li tudo sobre a morte.
Escrevi sobre a minha
e depois embebedei-me.
A bala vem pelo ar
(ruído onomatopaica) e
crava-se, cava, ceva-se
nessas carnes. Era a minha.
Tive uma bala marcada:
à última hora telefonei
a desistir. 'da-se!
Pior para o Soares que entra
nestes versos já morto.
São de ferro. A tua era,
ó Soares, ou de aço,
e "agora choro contigo"
ausente uma vila
branca do Alentejo: tu.

Diz-se que fazem assim
um pequeníssimo estúpido
orifício (não quis ver)
como um botão mas
destroem tudo, devastam
tecidos, vísceras nobres,
e então trazem até nós
a morte sanguinolenta.
Se ainda as fabricam
como no meu tempo, creio
que matam num, ah pois,
infinitésimo de segundo.
É brutal. Eu ouvi-as:
perde-se a tesão por um século.

in "A Musa Irregular", Fernando Assis Pacheco, ed. Assírio&Alvim, Novembro de 2006

terça-feira, 28 de setembro de 2010

Quase poema

à Anabela P.

Explodes nas têmporas como sangue
no rugido do animal nocturno,
constelação de palavras feridas,
no torniquete tenso da linguagem.
Adormeces entre duas linhas negras,
num espaço de sombra entre palavras,
desenhando muros altos entre viagens.
Da madrugada ascende uma maré
de luz,
ascendes como livro inacabado e insone,
recitativo, o tempo enche-se de pássaros,
de mãos pousadas sobre a espuma,
tecendo ondas debruçadas sobre o areal.

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

Disperso nº 1

Venho aqui todas as noites
e nada acontece
neste ecrã escuro.
Só eu me escrevo de nudez
e os outros escrevem-me
cartas brancas
duma alvura significante.
Às vezes gostava de pintar
violetas no céu e parar
o tráfego aéreo.

terça-feira, 14 de setembro de 2010

SEI

Sei que partirei com as palavras
da incompleta gare do tempo
em prelúdios de sombra,
os ramos muito quietos
reflectidos no lago profundo.

Eu que nunca parto
passos de pedra breve,
gotejando, alma desabrigada,
um fim de linha metálico.

E se um grito surdo ecoar
no muro do poema,
Sei que partirei envolto
na neblina dos espelhos

Sei que partirei agora
com a voz grave do baixo contínuo
devolvendo à terra o corpo
original.

sábado, 11 de setembro de 2010

RETRATO DO ARTISTA

Não voltarei a esboçar um raciocínio lógico.
Irra, que queriam formatar-me normal,
pintar-me os lábios côr de vinho,
rasgar-me no centro do peito o coração.
Embalar-me numa caixa dura,
com as obras completas,
e um laço no Natal, bem forte,
não fora a suspensão do corpo,
ceder na cervical.

Poesia a norte

o Peloponeso pinta-me o pénis Laurinda

in "a verdade dói e pode estar errada", João Negreiros

Aqui

quarta-feira, 8 de setembro de 2010

QUANDO PASSEAVAS

Quando passeavas na minha vida
há quanto tempo passaste?
e agora parado, o sol a pino
passas por mim cabelo solto
só, de mãos dadas ao vento
as sombras correndo loucas
girando em torno das copas
ramos e folhas em uníssono

E eu tão imóvel a tudo ver desfilar
o movimento perpétuo da galáxia
dos teus olhos, no sangue morno
quando te passeava na minha vida

VERSINHOS A UMA AMIGA FINLANDESA

Ó Anna Lüsa Uski minha dama de antanho
que é feito da tua bizarria
continuas bela como na fotografia?
eu quando penso em ti ainda tenho

dentro do pobre coração torcaz
aquele bicho a roer devagarinho
tu eras só pen pal mas tanto faz
mais sede não se tem dum pucarinho

não te perdoo que ficasses por lá
em Likkolampi casando com um qualquer
como pudeste ó Anna ser tão má?
yours sincerely já te chamava mulher

mais tarde eu fiz catorze anos
o amor era no meu peito como um lenho
quereis saber críticos vós fulanos?
inda me arrepia esta dama de antanho

in Variações em Sousa, Fernando Assis Pacheco, 1987

Poeta com paisagem campestre em fundo...

segunda-feira, 6 de setembro de 2010

(...)

Não foi sem dificuldades que este livro rompeu através dos interstícios do mundo até chegar às tuas mãos, leitor, para aí, como um deserto a abrir noutro deserto, criar uma irradiação simbólica, magnética, onde o branco do papel e o negro das palavras, essas cores que segundo Borges se odeiam, pudessem fundir-se e converter-se nessa outra a que, na enigmática expressão de Sá-Carneiro, a saudade se trava. Como um desses objectos cujo peso, assim que neles pegamos, instantaneamente se divide entre as nossas mãos e a alma, é mesmo de crer que ele esteja já dentro de ti - e algo de mim com ele. Acolhe-o, pois, com benevolência, que, chegada a altura, havemos de arder juntos.

Luís Miguel Nava, Vulcão, Lisboa, Quetzal, 1994, p.63

domingo, 5 de setembro de 2010

(...)

faltam-me divindades
musas de peito pétreo
e uma boca de sémen
cálido, o mastro erecto

navegações e portos
seguros, por uma vez
une autre biére,
antes do urinol alvo:
falhado.

Os marinheiros são
uns porcos, dizia-me
uma vez uma gaivota
cagam no mar alto

são loucos, isso sim
corre-lhes a maré
nos vasos sanguíneos
up and down, à beira
do enjoo matinal

bairro alto de novo
cais do sodré talvez
mais um copo pra
ver melhor o mundo

sem fundo

sexta-feira, 3 de setembro de 2010

Outro poema de amor

na duna nua
empoleirado
nos seios
de areia recosto
lanço cotovelos
ao mar

tocando o lábio da onda
regressando à duna
estendo a toalha
olho o olhar
a tarde cortada
meia laranja solar
creme no lombo
o pézinho dela
a pulseira pendendo
no fim da época
balnear

Meurglys III, The Songwriter's Guild (Van der Graaf Generator, World Record)

These days I mainly just talk to plants and dogs

all human contact seems painful, risky, odd;
so I stay acting god in my own universe
where I trade cigarettes in return for songs.
The deal's made harder the longer I go on:
I find me gone from all but secret languages.

If only I could phrase satisfactory words
in conversation, to make my passion heard...
If only...

Meurglys III, he's my friend,
the only one that I can trust
to let it be without pretence
- there's no-one else.
It's killing me, but in the end
there's no-one else I know is true,
there's none in all the masks of men,
there's nothing else
but my guitar...
I suppose he'll have to do.

Talking in tongues is easy when you know how,
quite pleasing, but still nothing works out right.
Pressurised lungs, heart bleeding,
you'd better slow down
and show that you can make it through the night.
However dark it seems,
the present is just the present,
beyond it no further darness lies concealed
and through these desperate dreams,
this longing for friends and comfort,
you know that in the end all will be revealed.
When no more plants or dogs
or rooms are there to hear you,
and no-one is left near you, then you'll see:
in the end there's only you and Meurglys III,
and this is just what you chose to be,
fool!

Though I know all this is just escape,
I run because I don't know where the prison lies.
In songs like this I can bear the weight...
I'm running still,
I shall until,
one day, I hope that I'll arrive.

Inauguração das pesquisas

Encontraram-me uma mancha
de óleo no sangue, e
hoje estacionou em frente ao prédio
o equipamento de sondagens.

quinta-feira, 2 de setembro de 2010

Home sweet home

Levei-a a minha casa,
aquele espaço de íntimas
palavras, a meio caminho
entre duas ilhargas,
bastou-lhe umas prateleiras
e ficou pernoitando na livraria.

quarta-feira, 1 de setembro de 2010

Direitos

O melhor da semana, digo, destes últimos meses:

"Não reconhecendo direitos
aos anónimos, tratarei os seus comentários
com tolerância ou com desprezo,
conforme a circunstância.
"

in blog Claustro fobias Aqui

Charles Koechlin - um ilustre desconhecido

POESIA A SUL

choro
porque te queria
aportada mais cedo
nos meus braços

choro
porque quero
que nunca me partas
assim o crepúsculo chegue

choro
porque um cheiro
silvestre de flores
nunca me parou assim

choro
porque ainda encontro
o macio das tuas mãos algodão
amimadas no meu peito

choro
e as lágrimas escarpadas
não são mais que espelho e oxigénio
tudo ainda mais vivo e a pele aquecida

afinal choro
nunca foi nada assim


in “Mar de Fora” - Henrique Graça – Lagos, 2010

Em edição de autor, intitulada "Mar de Fora", de imagem gráfica invulgarmente cuidada, a poesia de Henrique Graça (n.1966, Lagos), revela-nos um discurso do primado da palavra, transportando o leitor à inexorável energia dos elementos, onde o mar, desempenha um papel central, como o próprio título faz prenunciar e onde a nostalgia do mareante transpõe a visão dos recortes dessa costa do sul de Portugal, cuja beleza tem vindo a ser progressivamente erodida, com tudo aquilo que a metáfora encerra. Não faltam na estrutura da obra, referências ao funcionamento cíclico das ondas "Três sets...", complementadas por ilustrações de elementos marinhos. É sobretudo um discurso poético à beira do abismo azul, da vertigem dos grandes espaços, aquele que nos é dado pelo poeta lacobrigense.

P Ponte (Caldas da Rainha, 1 de Setembro 2010)

Também no blog poemas em azeite: Aqui

Sala de espera

Atravessas a noite
de norte a sul,
não pares, nunca pares,
em cada passagem de nível

um guarda nocturno,
anota a velocidade,
na congestão das têmporas
no ritmo batuque de madeiras

Estações e apeadeiros,
transportando o quotidiano
sonolento das manhãs,
o rigor dos compassos

composição vazia,
quarteto para o fim
do tempo, messiaen,
um tempo de trabalhadores,

salpicando o cais,
sala de espera
da solidão operária.

terça-feira, 31 de agosto de 2010

Portugal contemporâneo

O mar demoliu a falésia,
e andam agora a repor
umas pedras de peito
enquanto as mansas vagas
lavam o tornezelo subido
da arriba.
Pescar numa janela alegre
peixe chumbo
e esperar a nova vaga
da fiscalização.

Manhã subentendida

Na lâmina larga da noite
enfio as horas redondas,
bebendo as esferas, alcool,
antropologia rolante.

Passara-se o mistério
do amor contrafeito,
no ar o cheiro róseo
do comércio de flores.


Esperando a abertura do dia
na inação do leito
enrolado em papel pardo
dos pés à poesia.

As dobradiças da alma
rangendo no palato,
recortando um sonho evadido
num aroma guronsan.

A brancura dos campos,
uma geada persistente
nas falanges.

Dispersos, datados de 2007

Habitas-me o corpo entranhado das palavras,
o oiro leve dos cabelos,
e todos os dias te trago no peito,
na pele, nas mãos.

*

Atravessas a lâmina fina,
Os pés plantados. O suave arco
da pele tensa, cálida.
Os dedos sulcam como arados,
a ferida da boca.
Alimentas meu corpo. Meu sexo.
Alimento.

*

Só na palavra escrita perduras,
só a urgência do sol te cega.
Se a vida cintila és um astro polar
no nosso tempo de amar.

segunda-feira, 30 de agosto de 2010

TAREFAS DEPOIS DE FÉRIAS

Primeiro, afastar as teias
de aranha e os tapumes
à entrada.
Depois, forçar levemente
o hímen sem rebentar,
para que as águas de agosto
não se espalhem em casa.

domingo, 29 de agosto de 2010

CARTAS DE VERÃO

Estou aqui escrevendo
uma carta de amor
directa ao teu centro
das férias,
ficou presa no atendedor
de chamadas,
encalhada no lodo do rio,
sempre assim me acontece,
mareante aventureiro,
das sete partidas do vento,
amarradas ao cais.

sábado, 28 de agosto de 2010

(...)

retorno à exaustiva deambulação
dos inadaptados
o lixo crescendo nos aposentos
a memória morta
preencho as paredes nuas
páginas de sangue
alguns pássaros circulando
no túnel da voz
quando tudo arde na floresta
e as tuas mãos
me envolvem num manto de cinza

FRUSTRAÇÃO

O caminho parecia-lhe fértil e verde no fundo da janela que emoldurava o perfil no carro. Ele falava e gesticulava de um modo único, com aquelas mãos de proporções equilibradas e seguras no volante. Aceitou o convite dele sem duvidar que o sim era mais do que o aceite de um convite para almoçar naquele local próximo à cidade. Era um sim a ele e a todas as suas sutis investidas. Conversaram muito para não dar espaço ao verdadeiro sentido de estarem ali, anônimos de si mesmos, sob todos os disfarces dos desejos encobertos nos assuntos. Num instante e já se encontravam na vila feito baratas tontas, sem que ela fosse objetiva quando ele perguntava sobre onde iriam. Ele queria um sinal explícito e sua hesitação cheirava a medo. Depois de alguns talvez, você é quem sabe, pode ser, foram parar naquela pousada que tinha um enorme jardim. Achavam que não queriam um quarto, iam primeiro visitar o local. Caminharam constrangidos e cautelosos pela trilha que levava ao chalé mais distante da portaria, sentaram-se em frente a um pequeno lago e permaneceram falando sem trégua naquela manhã ensolarada e incerta. Foi, então, que ela tirou os sapatos e colocou os pés na água para diminuir a tensão, dar espaço aos impulsos sensoriais e naturais de fundo que os uniram. Ele pareceu não entender o gesto, riu dos seus pés pequenos e a convidou para ir embora. O sol agora os queimava. Almoçaram num restaurante de comida sem tempero, falaram mais ainda na longa viagem de volta e se despediram com aquele até mais banal e definitivo.

in Blog "Templo de Atena" Aqui

CONTOS DA VIDA NORMAL

1. FAIXA DE RODAGEM

Resolvi partir para outro mundo, deixando para trás a casa e todos os objectos inúteis que por aí repousariam inanimados durantes os próximos vinte e um dias. Embora esta não fosse uma partida definitiva, sem regresso, ficava-me sempre uma sensação que qualquer destes dias a partida seria definitiva.

Viajei durante quatro horas bem medidas, as rodas assentes no asfalto, duas faixas para cada lado, aqueles que iam, como eu, aqueles que regressavam, aqueles que estavam simplesmente de passagem. No fim da estrada, quando as planícies começam a dissipar-se, a enrugar-se progressivamente e os vales que se encaixam mais fundo, surgia água por debaixo das pontes longilíneas, com colunas de betão cravadas nas encostas, ao fundo uma miragem azul, que vai tomando forma de oceano, estou a chegar, na companhia de mais alguns milhares, ao mundo que me prometeram na agência de viagens.

No banco de trás a Maria, face rosada e cabelo esvoaçando, encostada às pranchas. A meu lado o Rui, headphones na cabeça, um zunido indisfarçavel de heavy que se misturava com o som de motores.

Na rádio uma voz feminina ditava as previsões metereológicas para os próximos dias, vento e chuva fraca, lindo, não me venderam tal. Volto a mergulhar na condução, um ar quente entra pelas janelas do automóvel, amaciando o ar.

Próxima saída resolvo parar, não é ainda o destino, mas é preciso esticar as pernas, eles continuam dormindo.

Finalmente, o mar à minha frente, como que abrindo um livro de poesia pela primeira vez. Neste mundo viverei nos próximos dias, alheado da casa de persianas fechadas que ficou bem enterrada no universo das coisas inertes e distantes que me propus esquecer.


2. TOALHA DE PRAIA

As férias continuavam, tudo num ritmo tépido, sem compromissos estruturados, ao sabor do vento que soprava do norte de África.

Ao chegar à praia, pés enterrados na areia, o telefone tocara, sim Mara, logo, sessão de cinema e beber um copo ao luar, disse-lhe que sim, lá estaria, oito e meia da noite, ela com uma voz de entusiasmo um pouco estridente, aflorando no auscultador.

Estendo a toalha, não longe da água, ao fundo, sobre a pintura da nesga de mar, dois veleiros brancos, algumas gaivotas e farrapos de nuvens, sujavam o céu de agosto.

Deitado sobre a toalha, iam passando imagens na minha cabeça, sem qualquer ordem aparente, puxei o jornal e li as notícias do dia, sem interesse, ao som da dança surda das ondas.

Estariam já 32 ou 34 graus e corpo amolecia de inacção. O tempo certo para o primeiro mergulho nas águas claras do verão. Penetro na fina camada de mar, litoral, como grande batráquio e ao emergir da água, do outro lado, escorrem-me fios salgados, misturados com o cabelo desalinhado, em sintonia com as ideias caóticas da manhã.

Mara, ocasional companheira desse verão, resolvera aventurar-se nos trilhos serranos, bem cedo, ainda quando a temperatura o permitia. Gostava da sua companhia, aprendia com ela a redescobrir a amiga de infância que nunca tive.

Mergulhos de meia em meia hora e entre eles, ficar de papo para o ar esperando que o sol nos secasse a pele. Umas breves palavras pelo meio, nada de importante, uma gargalhada sonora, ocasional, um sopro de grãos de areia. As tardes passavam, até o sol atingir a nesga do horizonte pintado de mar e apagar os veleiros, por entre cores de fogo.


3. VERTIGEM NOCTURNA

Sentado no bar da praia, eu, a Mara, o António, ritmos electrónicos no ar, palmeiras, chicas, o horizonte carregado de uma luminosidade densa, misturada com alcool.

Ainda sentia o sal no corpo, o perfume de Mara entranhado no fim da tarde, o seu corpo suave encostado ao meu, a pele na pele, o toque das mãos desenhando círculos, vestígios de água. Toda a natureza dos oceanos na minha cabeça, anda dançar, diziam, e eu momentaneamente preso, imóvel naquele fim de tarde.

Levantei-me finalmente, um pouco cambaleante, em direcção à pista de dança, o som agora mais nítido, agredia os ouvidos, numa profusão de decibéis coloridos.

Mara rebolava as ancas e encostava o corpo ao meu, não devia ter bebido tanto, pensava, os círculos coloridos ascendiam do chão da dança até à bola espelhada no tecto alto, sinto mãos envolverem-me, depois o escuro.

Acordo no quarto do hospital, uma médica vociferava em tom irritado, tudo em cima de nós, e depois é só excessos, odeio o verão. É comigo, pensava, enquanto da janela do quarto da enfermaria entrava uma luz verdadeiramente excessiva, não podem correr as cortinas, isto não é um hotel, alguém de bata branca retorquia.

Corria-me nas veias o antídoto, melhor teria sido o vómito, mas a medicina tem protocolo, amansa as feras com matérias sofisticadas.


(Salema, 12 de Agosto de 2010)

quarta-feira, 25 de agosto de 2010

Poema entre as horas da noite

Suspendi o sono por entre as quatro ou cinco da madrugada
como premindo o pause do leitor da evidência
o dia sem claridade ainda suficiente, entrava
líquido como o bréu da cintura industrial,
enquanto os olhos bem abertos da poesia,
cintilavam aqui em cima, a escassos centímetros do beiral.

Poesia & Lda.: RUI PIRES CABRAL (2)

Poesia & Lda.: RUI PIRES CABRAL (2)

segunda-feira, 23 de agosto de 2010

ORLA MARÍTIMA

O tempo das suaves raparigas
é junto ao mar ao longo da avenida
ao sol dos solitários dias de dezembro
Tudo ali pára como nas fotografias
É a tarde de agosto o rio a música o teu rosto
alegre e jovem hoje ainda quando tudo ia mudar
És tu surges de branco pela rua antigamente
noite iluminada noite de nuvens ó melhor mulher
(E nos alpes o cansado humanista canta alegremente)
"Mundança possui tudo"? Nada muda
nem sequer o cultor dos sistemáticos cuidados
levanta a dobra da tragédia nestas brancas horas
Deus anda à beira de água calça arregaçada
como um homem se deita como um homem se levanta
Somos crianças feitas para grandes férias
pássaros pedradas de calor
atiradas ao frio em redor
pássaros compêndios de vida
e morte resumida agasalhada em asas
Ali fica o retrato destes dias
gestos e pensamentos tudo fixo
Manhã dos outros não nossa manhã
pagão solar de uma alegria calma
Da terra vem a água e da água a alma
o tempo é a maré que leva e traz
o mar às praias onde eternamente somos
Sabemos agora em que medida merecemos a vida

in O tempo das suaves raparigas e outros poemas de amor,
Ruy Belo
Assírio & Alvim, 2010, Colecção Gato Maltês

Pequeno poema de amor

Algumas vezes,
quando te olhava
no fundo dos olhos,
escrevia-te longas cartas,
que por inércia ou pudor,
foram ficando com a idade,
amareladas,
nas estantes
de um qualquer alfarrabista.

domingo, 22 de agosto de 2010

SEI BEM

Sim, sei bem
Que nunca serei alguém.

Sei de sobra
Que nunca terei uma obra.

Sei, enfim,
Que nunca saberei de mim.

Sim, mas agora,
Enquanto dura esta hora,

Este luar, estes ramos,
Esta paz em que estamos,

Deixem-me crer
O que nunca poderei ser.


Fernando Pessoa

Estou aqui deitado
num lençol de areia,
quando de repente
alguém me beija:
é o sol que me beija
a face, por entre
os teus lábios de luz.


Consolação, Ago. 2010

quarta-feira, 18 de agosto de 2010

(...)

É um retrato anguloso o que vou de ti pintando,
se as águas que turvam o olhar mo permitirem:
a maré
todo em estrutura óssea,
em altivez arqueada de galeão,
fundeada no lodo espesso do arade,
entrevendo o forte de são joão.

Pintura como esta só existe na minha cabeça,
ou aí se revelou como teus braços,
ramos fortes de figueira brava,
e o que sinto é uma incapacidade,
talvez incompetência,
de desenhar os teus contornos ósseos,
alvos, quase frágeis,
na robustez maternal de dois braços,
de árvore bem real.

terça-feira, 17 de agosto de 2010

Poema-bala

um momento antes de atingir a loucura,
imediatamente antes dela, límpida,
como uma bala negra: poesia bala,
como a fala, a voz e durante ela,
a loucura, quero eu lá saber
qual o momento exacto do disparo
na nuca, como estrofe em agonia,
caro leitor, que estais com o revólver
apontado à página, o olhar atento,
reduzindo aceleradamente o tempo
a pó,
a cabeça no pó dos livros,
importa-me lá que aí estejas, planeando
o diâmetro do orifício,
enquanto termino mais um verso
na mortalha do tempo,
amanhã regressarei com mais
uma caixa de projécteis,
espero reencontrar-te morto:
como eu.

Ontem

aqui estou, rochedo nu,
escrevendo poemas



Ontem bati de frente,
escorrendo mar
debaixo das engrenagens
retorcidas,
ficaram-me dois euros no bolso
e pequenas folhas de papel,
imaculadamente brancas
com filamentos rubros
na margem,
neles estavam as tuas mãos
pousadas, ensaiando um rabisco
de ar.

Regressei quando não queria,
eu nunca me quero,
e agora existem
trezentos e cinquenta quilómetros,
por (te) escrever.

Um poema de amor

todas as mulheres
todos os seus beijos as
diferentes maneiras de amar e
falar e exigir.

as suas orelhas todas têm
orelhas e
gargantas e vestidos
e sapatos e
automóveis e ex-
-maridos.

a maioria
das mulheres é muito
quente e lembram-me torradas
com manteiga enquanto a manteiga
se derrete
no meio.

há um certo olhar no
olhar delas: elas já foram
possuídas elas já foram
enganadas. na realidade não sei o que
fazer por
elas.

sou
uma boa picha um bom
ouvinte
mas nunca aprendi a
dançar – estava ocupado
com coisas maiores.

mas gostei das diferentes
camas
fumar cigarros
olhar para os
tectos. não era possessivo nem
injusto. Somente
um estudante.

eu sei que todas têm
pezinhos e vão descalças pelo chão enquanto
lhes vejo os tímidos cus no
escuro. sei que gostam de mim, algumas até
me amam
mas eu amo muito
poucas.

algumas dão-me laranjas e vitaminas;
outras falam baixinho da
infância dos pais e das
paisagens; algumas são quase
loucas mas nenhuma delas é sem qualquer
motivo; algumas amam
bem, outras nem por
isso; a melhor na cama nem sempre é
a melhor noutras
situações; cada uma tem o seu limite como eu
tenho os meus limites e todos
aprendemos isso
rapidamente.

todas as mulheres todas as
mulheres todos os
quartos
tapetes e
fotografias e
cortinados, é
parecido como uma igreja
só que às vezes ouvem-se
risos.

as orelhas os
braços os
cotovelos os olhos
que procuram, a ternura e
a espera eu fiquei
preso eu fiquei
preso.

versão de manuel a. domingos in Blog: O amor é um cão do inferno

segunda-feira, 16 de agosto de 2010

Anti-poema

Um grito embora vago
um som embora surdo
o vento embora frio
a noite embora bréu

o sexo embora breve
a vida embora morte
a pele embora carne

três marinheiros
monóculos
o ilhéu de luz
apagado
anti-poema
alado.

terça-feira, 3 de agosto de 2010

Poeira e música

Os festivais de verão vão a meio,
sudoeste incluído,
no talão de multibanco
escrevo um poema sem saldo,
aparentemente vazio,
alguns dígitos rememoram
a grafia distante de versos,
as gotas daquele inverno,
obliquamente impressas no papel:
a transferência foi efectuada
com sucesso.

quarta-feira, 21 de julho de 2010

...

FLORES CARNÍVORAS II

De repente regressaram-me as flores,
fora de época, com demasiada água nos caules,
num bailado de pétalas desenhadas pelo vento,
no chão de poeira.
em todo este jardim de espécies exóticas,
ascende agora na orla carnuda de cactos,
uma morte intensamente perfumada.

Vou cavando até que a raiz nua,
se revele no peito.
De novo as flores me afloram à boca,
Absolutamente carnívoras.

Flores pontuando a pele como pápulas,
papoulas acidentais,
flores azuis, orquídeas nos meus campos
noctívagos.

segunda-feira, 19 de julho de 2010

Caderno de hesitações 03

Arrecadei os pedaços de papel
(todos os meus haveres)
e vim viver para esta rua,
para esta cidade que não me conhece,
nem mesmo os vizinhos, emigrantes,
acondicionei tudo e empreendi a viagem,
trazendo comigo a caixa de correio,
vazia,
onde agora colocam panfletos de poesia
pop,
instruções de produtos de limpeza,
programas de turismo sénior,
aparelhos auditivos - poupar no IRS.
Fechei-me na imensidão de folhas
de Outono, julgando revertê-las
ao cerne da floresta,
que caiba inteira na rua estreita,
para onde transportei, de outro lado,
a minha própria solidão.

sexta-feira, 16 de julho de 2010

Caderno de hesitações 02

SANDALUS AND CINNAMON

Those lisbon days come back to me,
on a full grey January.
Those river bed alleys, whiter than light,
the silver, salty, photographic river waters,
like sandalus and cinnamon scents,
covering gently someone’s hands,
slowly forgotten.

In "Small bok of hesitation" - 2010

quinta-feira, 15 de julho de 2010

Caderno de hesitações 01

1986. Julho

Tinha acabado de sair do seu quarto pela janela. Coloquei o capacete, uma semi-calote esférica enterrada na cabeça, ridículo como sempre tenho sido.

Dei ao pedal da motorizada, uma, duas, três vezes e ainda emerso no fumo do escape, rolei pela calçada acima, junto à Igreja Matriz. Eram 4:16 da madrugada e a humidade da noite colava-se ao rosto.

Três horas antes, tinha entrado pela porta principal, entreaberta, a medo, e ela estava à minha espera com o robe entreaberto. Beijei-a ardentemente, sentindo os mamilos contra a camisa engomada, as minhas mãos deslizavam por debaixo do robe acariciando a sua pele aveludada, enquanto ia sendo empurrado para o quarto adjacente à sala de entrada. As minhas pernas embateram na cama e de repente ela caíu comigo, espalhando os cabelos longos sobre os lençóis. Sussurrava-me dizendo que não devíamos fazer barulho, que os pais estavam num quarto um pouco mais acima. Enquanto isso, o robe acetinado caía de um dos lados da cama, como um desastre natural e sentia-lhe o hálito quente no meu pescoço, enquanto as suas pernas fortes, torneadas, me aprisionavam.

Era Julho em Portimão, fazia pouco tempo que tinha aprendido a conduzir motorizada.


in Caderno de hesitações, Ed. do autor, 2010

Rega automática

Na esquerda, uma luva grossa
protege-me dos acentos agudos.
A direita, despida e guardada,
receio que se transforme em água,
ainda não foi urgente abri-la.

Tornou-se uma evidência que estas
mãos podiam ficar
mais longe do prolongamento
dos ouvidos.
Deixei, nessa mesma tarde,
no colo as agulhas
e os fios, espessuras e números incompatíveis.
Nunca fui capaz de ensaiar
as dobras
meticulosas na folha branca.
Um só vinco geométrico, em papel
de máquina, podia disciplinar-me
todos os gestos (mesmo os
que afinal não foram).
Se fosse hábil de tacto,
rendia-me ao origami.

in Curso intensivo de Jardinagem , Margarida Ferra, ed. &etc, Maio 2010

domingo, 11 de julho de 2010

festivais de verão

embrulha todos os teus haveres em papel pardo
uma camisola como destino, abandona os sapatos,
os próprios pés se conseguires
e faz-te à estrada, até que o pó te revele,

abandona os livros, a casa, a própria família
sai, sai por uma porta de som com árvores dentro
sai, embora a distorsão do mundo te incomode
sai, enquanto os pássaros ruidosos voam.

bebe todas as cores dos holofotes, um a um
até que os olhos adormeçam, num rio de sombra,
bebe até que não te sintas, bebe-te.
os festivais são indiferentes, regressam no ano que vem
enquanto tu permaneces envolto em pó.

sexta-feira, 9 de julho de 2010

sábado, 26 de junho de 2010

7ª Sinfonia - Sergei Prokofiev

(...)

11 de março
definha-se texto a texto, e nunca se consegue escrever o livro desejado, morre-se com uma overdose de palavras, e nunca se escreve a não ser que se esteja viciado. morre-se, quando já não é necessário escrever seja o que for, mas o vício de escrever é ainda tão forte que o facto de já não escrever nos mantém vivos. morre-se de vez em quando, sem que se conheça exactamente a razão, morre-se sempre sozinho.
nunca fui um homem alegre, morro todos os dias, como poderia estar alegre?
sento-me e medito na busca de novas palavras. tornou-se quase inútil escrevê-las; chega-me saber que, por vezes, as encontro, e nesses momentos readquiro a certeza dalguma imortalidade.

in O medo, Al Berto, Assírio & Alvim, 2005

sexta-feira, 25 de junho de 2010

Na representação da noite

eu, tu e o outro em vasos comunicantes,
corpos líquidos gesticulando,
flowing free, na prateleira existem
livros estacionados em segunda fila
à beira do extermínio
livros transgressores, transgredindo
o corpo nu da palavra

tu e o outro abandonaram
este texto quase desistência
de intertextualidade

prefiro pensar que a pista de asfalto
surge velozmente por detrás
da vírgula, provocando-me
o acidente da linguagem

a escrita imprime o sulco das tuas
nas minhas mãos.

terça-feira, 22 de junho de 2010

Artigos de férias - Clarinet Concert (Aaron Copland)



a vida
livros com páginas amarrotadas
a bomba pra inalar
o ar
a cadeira de praia
bola de praia
carregar a areia
um peso absurdo na mala do carro
toalhas e mochila, saco-cama
ingresso na quinta dos carriços
a cabeça (não esquecer)
a piscina insuflável
a mesa de cabeceira
música para clarinete.

quinta-feira, 17 de junho de 2010

Goldberg variations - J. S. Bach

(na impossibilidade feminina da tarde)

as mulheres que não toco com os dedos,
que não ouso tocar
as mulheres impossíveis
seres esbeltos como gazelas
no deserto da minha tarde

as mulheres que imaginadas,
vejo à distância de um olhar
são mais reais para outros
só para mim um rasto de impossibilidade

é nesse intangível que transporto no peito
que as mulheres são mais belas
a impossibilidade doirada das suas mãos
mergulha neste meu templo-espelho
onde as observo e quase as posso tocar

terça-feira, 8 de junho de 2010

24 Prelúdios e Fugas, Op. 87 - Tatiana Nikolayeva

(...)

Às vezes somos colocados no caminho dos outros para significar coisas, tantas coisas...

segunda-feira, 7 de junho de 2010

NO NÚMERO 28

No número vinte e oito da minha rua
estão presos pensamentos
entraram sem quaisquer documentos
clandestinos subindo degraus

quatro a quatro, que é um
número matematicamente sólido
tentando construir este poema de quadras
sem que a forma tropeçe na escada

no corrimão, no gato preto
na velha de bengala rodopiando,
que num tropel descendo grave
a esperava o 112 no rés-do-chão.

logo a maca morrendo morta,
a velha reanimaram de máscara,
insuflando oxigénio puro,
mais puro "seria não"!

Poesia de Gastão Cruz

Cobalto nos faróis
no azulado zinco dos cabelos
no calor ampliado das axilas
nas vértebras arando o pavimento
...

in "A Morte Percutiva" - Poesia 1961-1981, Ed. Oiro do dia, 1983

Shostakovich 5th

domingo, 6 de junho de 2010

[Cabelos de prata]

Chegou a Caldas.
Nos pés engrossavam-lhe bolhas, enquanto o sol a pino furava o plano inclinado da calçada. Um dia de luz excessiva estampada nas paredes da cidade.
Não conhecia ninguém completamente novo há muito tempo. Tenho amigos é certo, antigos, alguns mortos, outros desaparecidos, cheios de bolor da humidade da memória.

A Lara chegava ao café, vestida para a ocasião, um aroma de flores na roupa. Eu como sempre, com a indumentária tradicional, t-shirt, jeans e ténis all-star.
Cumprimentei-a timidamente, ela com sotaque françês confirmava o cumprimento: "avec plaisir".

Eu continuava pensando nas minhas coisas, como sou um escritor medíocre e em Shostakovich, na 5ª Sinfonia:
- Aqui tem, conforme prometido, trouxe-lhe alguma música. Toma um café?
- Sim, aceito. Sem acúcar! - disse Lara.
Recostado na cadeira metálica, quente do sol a pique, da torreira, observava as sua mãos inquietas, gesticulando por entre as palavras.
- De onde lhe vem esse sotaque, doutora?
Ela hesitou um pouco antes de responder.
- Vivi dez anos em Paris, dez longos anos "sur la Seine", histórias antigas!
- E o senhor?
- Trate-me por tu.

Voltei às minhas deambulações existenciais.
Naquele prédio completava-se a desolação da cidade, num microcosmos calmo. Cada apartamento era uma célula maligna que alastrava no corpo pesado do edifício.
No primeiro andar direito vivia uma professora de filosofia, de cabelo côr de prata, sempre desalinhado, que apesar de viver no mesmo piso que eu, nunca nos cruzámos. Mais abaixo, no rés-do-chão, vive a vizinha Anabela e o seu gato Fred. A "doutora", como eu a chamava, desafiava o equilíbrio do seu biorritmo vivendo e trabalhando de noite e dormindo de dia. No segundo andar o Pedro escutava Bach contínuo pela noite adentro, enquanto trabalhava arduamente nos seus projectos.
Havia quatro apartamentos vazios, como casulos secos, ainda por ocupar. Eram os efeitos da crise económica, dizia-se.

Havia nela uma sabedoria estranha, uma liberdade total, a ausência de regras, como quem sai de casa sem dia ou hora para chegar, um exercício de caos absoluto.
Vagueava de noite, em festas, como se a efemeridade fosse a única fundação da sua existência. E a isso dedicava todas as suas forças com sofreguidão. Nada nem ninguém lhe interessava, apenas a vacuidade branca dos dias.
A rapariga dos cabelos de prata tinha-se transformado na própria luz que se extinguirá no toque furtivo de qualquer interruptor, a qualquer instante.
Finalmente a sós com ela, nua, na escuridão, sinto as pontas espigadas dos cabelos de prata, um espigado macio, não como eu tinha imaginado.
Toco-lhe suavemente na pele e ela abraça-me, uma lágrima grossa rola nas minhas costas. Os seus lábios carnudos e quentes passeiam pelo meu peito, as mãos ligeiramente trémulas, uma tremura das noites de solidão. Deitámo-nos sobre o lençol enrugado, os corpos encaixando por entre dobras finas. Ao longe o som entorpecido de Bach dissolvia-se na escuridão, tranquilizando os seus fantasmas.

quinta-feira, 3 de junho de 2010

LOOP II

CENA 9

(noves fora)

nada

UM FERIADO

Repare doutora, podemos também enveredar pelo caminho da indiferença. A doutora finge que não repara em mim, que lhe sou completamente indiferente, o que sabe não é de todo o que se passa e eu, por outro lado não lhe falo, até que o silêncio ensurdeça de vez.
Ensaiaremos este bailado mecânico, até que o ar se torne pesado, demasiado pesado para respirar, até à inevitável explosão, que nos subtrairá os dedos.
Sei que não é isto que pretende, mas estamos já dentro deste corredor de incomunicabilidade, num tubo sem regresso.
Nesta altura só me resta telefonar-lhe:
- Doutora, ainda está aí?

domingo, 30 de maio de 2010

Hoje no Cistermúsica - 3º e 4º Andamento do 4º Quarteto de Cordas Op. 36 de Béla Bartok

O XVIII Cistermúsica inicia-se hoje em Alcobaça



O festival Cistermúsica 2010 arranca este domingo, 30 de Maio, com o concerto do Cuarteto Casals na Sala do Capítulo do Mosteiro de Alcobaça. Este ano, o festival debruça-se até 31 de Julho sobre as ligações entre música e literatura.

PROGRAMA

Dia 30 de Maio - Concerto de Abertura
18h – Mosteiro de Alcobaça, Sala do Capítulo
Cuarteto Casals (Espanha)
3 euros

Dia 5 de Junho
21h30 – Igreja de Nossa Sra. Dos Prazeres, Aljubarrota
Nuno Inácio e Stephanie Manzo

Dia 6 de Junho
18h – Celeiro do Mosteiro de Alcobaça
Lusio Voice
5 euros

Dia 11 de Junho
21h30 – Igreja Paroquial Santo André, Cela
Adriana Ferreira e Trio de Cordas
3 euros

Dia 12 de Junho
21h30 – Igreja Matriz de Évora de Alcobaça
Adriana Ferreira e Trio de Cordas
3 euros

Dia 13 de Junho
18h – Mosteiro de Alcobaça, Sacristia
L’Angelica
8 euros

Dia 19 de Junho
21h30 – Cine-Teatro de Alcobaça
Orquestra do Algarve
Entre 5 e 8 euros

Dia 20 de Junho
18h – Cine-Teatro de Alcobaça
Trevor Wye (Inglaterra)
5 euros

Dia 26 de Junho
21h30 – Cine-Teatro de Alcobaça
“Contos Dançados de 3 países”, pela CeDeDe

Dia 27 de Junho
18h – Centro Cultural Gonçalves Sapinho, Benedita
“Tubax”
5 euros

Dia 3 de Julho
21h30 – Mosteiro de Alcobaça, Sacristia
Cláudio Marcotulli (Itália)
5 euros

Dia 4 de Julho
18h – Convento de Coz
“A Imagem da Melancolia”
5 euros

Dia 9 de Julho
21h30 – Mosteiro de Alcobaça, Claustro D. Dinis
London Brass Tentet (Inglaterra)
Entre 5 e 8 euros

Dia 22 de Julho
21h30 – Mosteiro de Alcobaça, Sala do Capítulo
Sonor Ensemble (Espanha)
5 euros

Dia 23 de Julho
21h30 – Igreja Matriz de S. Martinho do Porto
Quinteto À-Vent-Garde
3 euros

Dia 24 de Julho
18h – Igreja de Nossa Sra. Da Ajuda, Vestiaria
Quinteto À-Vent-Garde
3 euros

Dia 30 de Julho
22h – Mosteiro de Alcobaça, Claustro D. Dinis
Jue Wang (China)
Entre 8 e 45 euros

Dia 31 de Julho – Concerto de encerramento
21h30 – Cine-Teatro de Alcobaça
Orquestra Metropolitana de Lisboa

sexta-feira, 28 de maio de 2010

!!!

CENA 15

quando o coração manchado
a tinta de esmalte
pulou a um ritmo incerto
galgou o passeio
como qualquer peão.

quando deu entrada no hospício
não tirou os olhos do decote
da enfermeira
na enfermaria

escutava compulsivamente
free-jazz
e balbuciava palavras sem sentido:
kerouac, baudelaire, ezra...

mais tarde foi-lhe diagnosticado
um poemário no cérebro

um dia resolveu ser incendiário,
a partir dessa altura anda sempre
com uma árvore dentro do bolso.

quarta-feira, 26 de maio de 2010

Manhã muda

sem palavras, eu e tu e o silêncio,
os versos mudos,
desfeitos,
como pó,
nos passos,
traços na manhã muda
o vértice do corpo deslizando
o sangue vibrante nas carótidas
o sol oblíquo caminha a meu lado
na sombra
no ritmo
no passo apressado,
como eterno desconhecido,
e sempre as palavras na ausência delas:
em vez da ausência.
o sangue circular das palavras.(

ESCRITOR

galgar passeios era o seu passatempo preferido
no sono da contramão
o escritor é um tipo perigoso, um camaleão
depois os copos, sempre os copos
e a vida errante engarrafada

o que o salva são as massas de água
e os cornos enfiados na papelada
avaliação ambiental,
perequação compensatória
leitos de cheia até aos joelhos
o litoral afogado, o afogamento faseado,
na rua de Camões atolado em poesia
e pólens pendurados nas orelhas.

terça-feira, 25 de maio de 2010

sábado, 22 de maio de 2010

A bela do bairro


Ela era muito bonita e benza-a Deus
muito puta que era sempre à espera
dos pagantes à janela do rés-do-chão
mas eu teso e pior que isso néscio desses amores
tenho o quê? quinze anos
tenho o quê uns olhos com que a vejo
que se debruçava mostrando os peitos
que a amei como se ama unicamente
uma vez um colo branco e até as jóias
que ela punha eram luzentes semelhando estrelas
eu bato o passeio à hora certa e amo-a
de cabelo solto e tudo não parece
senão o céu afinal um pechisbeque


ainda agora as minhas narinas fremem
turva-se o coração desmantelado
amando-a amei-a tanto e sem vergonha
oh pecar assim de jaquetão sport e um cigarro
nos queixos a admiração que eu fazia
entre a malta não é para esquecer nem lá ao fundo
como então puxo as abas da farpela
lentamente caminho para ela
a chuva cai miúda
e benza-a Deus que bonita e que puta
e que desvelos a gente
gastava em frente do amor


Poema de Fernando Assis Pacheco

quinta-feira, 20 de maio de 2010

Uma dedicatória à jovem escritora

A Ceia está pronta (Supper's ready)

(...3:42...)

Algo inevitável está a acontecer
Regressas cada vez mais tarde
quando a noite adere às paredes
essa noite que me passeia
nos ombros de mansinho, regressas
com mãos que te percorrem
o pescoço em busca do ar,
as ruas lá fora pararam
meu amor, um lenço esvoaça
num movimento líquido
de sangue derramado.
Nunca mais voltas esta noite.

terça-feira, 18 de maio de 2010

CENA 3

Jack no centro da cidade,
empilhando caixas de whisky
contando os dias na parede
escrevendo versos
com as últimas gotas de sangue.

Viajamos com o indispensável:
caneta, papel, o pó dos dias,
um fato para o bailado final.
Mais um copo, até deixar
de sentir os contornos da noite,
manchas de carvão nos dedos.
Uma cama redonda
de sangue virginal,
arredondar a manhã
nos teus mamilos.

segunda-feira, 17 de maio de 2010

OUTONAIS

A tua pele tem rugas, na geologia dos vulcões,
no centro e daí emana uma lama espessa
na completa geografia do tempo holográfico
um diccionário para a concavidade
da noite com pássaros no ciclo das estações
a lâmina rasante na suspensão do ar por um trevo
folheadas as páginas das tuas mãos sobre as minhas

o teu corpo só o teu
a boca na boca breve
uma coxa na revelação
da luz incendiando
os viajantes
a língua desenha
um meridiano quando
despes a palavra.

quinta-feira, 13 de maio de 2010

SEGURANÇA SOCIAL

A vertigem da palavra
os labirintos da fala
a grande travessia desértica
com corpos de chumbo disparado
ilhas e tal como ilhas
a desolação da água no horizonte
um livro aquece o centro
com a humidade reentrante da pele
placa informativa:
abrigo climatizado para almas
perdidas.
Uma nova guerra nuclear.

OS TRÊS MAL AMADOS

Joaquim:

O amor comeu meu nome, minha identidade, meu retrato. O amor comeu minha certidão de idade, minha genealogia, meu endereço. O amor comeu meus cartões de visita. O amor veio e comeu todos os papéis onde eu escrevera meu nome.

O amor comeu minhas roupas, meus lenços, minhas camisas. O amor comeu metros e metros de gravatas. O amor comeu a medida de meus ternos, o número de meus sapatos, o tamanho de meus chapéus. O amor comeu minha altura, meu peso, a cor de meus olhos e de meus cabelos.

O amor comeu meus remédios, minhas receitas médicas, minhas dietas. Comeu minhas aspirinas, minhas ondas-curtas, meus raios-X. Comeu meus testes mentais, meus exames de urina.

O amor comeu na estante todos os meus livros de poesia. Comeu em meus livros de prosa as citações em verso. Comeu no dicionário as palavras que poderiam se juntar em versos.

Faminto, o amor devorou os utensílios de meu uso: pente, navalha, escovas, tesouras de unhas, canivete. Faminto ainda, o amor devorou o uso de meus utensílios: meus banhos frios, a ópera cantada no banheiro, o aquecedor de água de fogo morto mas que parecia uma usina.

O amor comeu as frutas postas sobre a mesa. Bebeu a água dos copos e das quartinhas. Comeu o pão de propósito escondido. Bebeu as lágrimas dos olhos que, ninguém o sabia, estavam cheios de água.

O amor voltou para comer os papéis onde irrefletidamente eu tornara a escrever meu nome.

O amor roeu minha infância, de dedos sujos de tinta, cabelo caindo nos olhos, botinas nunca engraxadas. O amor roeu o menino esquivo, sempre nos cantos, e que riscava os livros, mordia o lápis, andava na rua chutando pedras. Roeu as conversas, junto à bomba de gasolina do largo, com os primos que tudo sabiam sobre passarinhos, sobre uma mulher, sobre marcas de automóvel.

O amor comeu meu Estado e minha cidade. Drenou a água morta dos mangues, aboliu a maré. Comeu os mangues crespos e de folhas duras, comeu o verde ácido das plantas de cana cobrindo os morros regulares, cortados pelas barreiras vermelhas, pelo trenzinho preto, pelas chaminés. Comeu o cheiro de cana cortada e o cheiro de maresia. Comeu até essas coisas de que eu desesperava por não saber falar delas em verso.

O amor comeu até os dias ainda não anunciados nas folhinhas. Comeu os minutos de adiantamento de meu relógio, os anos que as linhas de minha mão asseguravam. Comeu o futuro grande atleta, o futuro grande poeta. Comeu as futuras viagens em volta da terra, as futuras estantes em volta da sala.

O amor comeu minha paz e minha guerra. Meu dia e minha noite. Meu inverno e meu verão. Comeu meu silêncio, minha dor de cabeça, meu medo da morte.


As falas do personagem Joaquim foram extraídas da poesia "Os Três Mal-Amados", constante do livro "João Cabral de Melo Neto - Obras Completas", Editora Nova Aguilar S.A. - Rio de Janeiro, 1994, pág.59.

João Cabral de Melo Neto

terça-feira, 11 de maio de 2010

(...)

Quando escavas, perdes a noção do tempo
curvado sobre ti, sobre o teu silêncio
cada vez a escavação é mais profunda
e vão surgindo brilhos,
as unhas preenchidas de terra
e vermes enxutos
de uma secura planetária.
Com a ponta da navalha extrais a terra
incrustada nas unhas e julgas
inevitável a cicatriz do ar

redondo verso de cicuta
árido e alvo
na espessura da morte
quando o poço transborda
na queimadura da água

sábado, 8 de maio de 2010

NEAL AND JACK AND ME




Neal and Jack and Me

I'm wheels, I am moving wheels
I am a 1952 studebaker coupe
I'm wheels, I am moving wheels moving wheels
I am a 1952 starlite coupe...
En route.....les Souterrains
Des visions du Cody...Sartori a Paris...
Strange spaghetti in this solemn city...
There's a postcard we're all seen before...
Past wild-haired teens in dark clothing
With hands-full of autographed napkins we
eat apples in vans with sandwiches ... rush
Into the lobby life of hurry up and wait
Hurry up and wait for all the odd-shaped keys
Which lead to new soap and envelopes...
Hotel room homesickness on a fresh blue bed
And the longest-ever phone call home.....no
Sleep no sleep no sleep no sleep and no mad
Video machine to eat time... a cityscene
I can't explain, the Seine alone at 4am
The Seine alone at 4a.m....Neal and Jack and me
Absent lovers, absent lovers...


"Beat", in "Beat", King Crimson, 1982

sexta-feira, 7 de maio de 2010

Carla

Tributo às Fábulas incompletas e ao seu autor José Luís

sempre desejei escrever um soneto simples com letras de água
catorze versos alinhados da forma habitual numa folha branca
em que as palavras mais não fossem que ondas desalinhadas
e as frases pudessem evocar as imagens náuticas que em mim


se repetem todas as noites. deitado ao teu lado não adormeço
sem içar uma âncora, mesmo quando sei que sonhas um mar
por nós nunca dantes navegado. ouço a tua respiração suave
e sei que em ti se aporta a ilhas encantadas, em ti não morre


nunca a promessa do aroma da canela. se te navegasse podia
descobrir que afinal não estou preso a um cais e libertar-me
das amarras de sal nos meus pulsos de marinheiro que sinto


ao olhar a mansidão do teu corpo feito caravela ancorada a nós:
por que razão continuamos encalhados nesta maresia só nossa
se sabemos ambos que a maré apenas sobe quando a noite desce?


in blogue Fábulas incompletas Aqui

quarta-feira, 5 de maio de 2010

(sem palavras)

Ferragudo

"O rio alarga no seu estuário, recortado pelos arcos metálicos pujantes, da ponte ferroviária que o cruza de nascente para poente, ambiente esse traduzido pelas palavras dum poeta:

Hoje sentei-me na moldura do arade,
e vi a massa aquosa que deslizava
como um espelho ondulado


E é aqui, nesta geografia de águas largas que tudo se passa a partir de 1969

Voltando a Ferragudo, haveria de habitar com meus pais e irmãos uma casa à entrada do povoado piscatório, debruçada sobre um braço do Arade que me oferecia o cenário de Janela indiscreta sobre a povoação, assente na base do rio, com a ponte rude e rasteira de arcos quadrangulares como o largo que que se anuncia no fim da descida. O cais e a beira-rio com os barcos de pesca, montando a partir daí, uma profusão de escadarias, rampas e ruas íngremes que culminarão no topo do casario, na Igreja Matriz, debruçada sobre o estuário do Arade, observando a fortaleza de Santa Catarina, na margem oposta do rio.

Deste lugar dominante a vista inicia a sua navegação oceânica de largos horizontes.
É pois esta imagem nostálgica de uma povoação compacta, bem estruturada nas ruas e rampas, subindo sempre com paredes alvas, um casario cúbico como uma pintura de Maluda..."

terça-feira, 4 de maio de 2010

Arte poética

Há poemas que não digo,
que não escrevo em vão,
há palavras nas telas,
na pintura de versos,
a carvão.

COM OS OUVIDOS POSTOS EM VALADO DE FRADES



quando a alma vagabunda despe-se prostituta
inebriada num balanço nocturno
quando as cordas cortam o frio
e posam nuas na margem
um vapor rasga a vidraça
café negro cais abandonado,
mais um copo de gelo afogado.

NACIONALISMO

Existe um papagaio na varanda da frente
que assobia o hino nacional.

CONDIÇÃO HUMANA

Convidei a vizinha para tomar um copo,
nunca mais me falou.

quinta-feira, 29 de abril de 2010

JACK

Música séria

já aqui não pernoitas nem falas comigo
nem és o imperceptível frémito de asas sobre o papel

Al Berto

selada a boca de mármore
uma lápide encerras,
na língua escurecida pelo vento
um verme vestindo asas

vou raspando os troncos
com um canivete de fel
um pequeno barco,
que pouso na lâmina lacustre,
lacerada.

há livros na boca da noite
emudecidos na tua boca
e tantas cartas queimadas
tolhendo a ligadura das mãos

e há pássaros redondos,
debicando sonhos,
comendo pão.

quarta-feira, 28 de abril de 2010

SOBRE O LADO ESQUERDO

Poema de infância

Meto a mão na algibeira
procurando uma gota de sangue,
colada aos dedos,
pequena gota da memória

ainda ontem o golpe sarou
persistindo no fluxo
do sangue quieto, que nos trouxe
cabelos grisalhos à fronte.

Essa minúscula gota doce
suspensa no espaço
duma cor rubra e quente
gardei-a na luva amputada

segunda-feira, 26 de abril de 2010

ALGUÉM OLHARÁ POR TI



Quando te perdes no cruzamento da inocência,
mais uma vítima certeira da poesia
e cambaleias na dor do corpo violentado,
quando os versos como aranhas aflorarem
à garganta em teias de suor,
um ar áspero arranhando os pulmões,
nesse preciso momento saberás
que tudo foi em vão:
Esmagado por um peso estranho,
embora as legendas continuem
a passar no écrã,
não sentes o chão.

sábado, 17 de abril de 2010

DESCALÇOS

ORDENAMENTO DO TERRITÓRIO

O rio - eram quatro da madrugada
irrequieto, entrou-me na cama
sonhei-o com forças brutais
trazia sementes misturadas
e uma guarda de escada
que me entrou no quintal

por baixo da cama um ralo
a água em espiral
acordei já no céu
Deus com a túnica enlameada.

ONTEM

Ontem dei por mim escavando
nas franjas do tapete
o corpo dobrado de caule

anteontem cesceu-me
uma pequena árvore
no peito,
florando mãos e braços

há uma semana que me cresce
uma semente no ventre
e regurgito folhas trilobadas

darwinismo congénito - penso

LUXURY

cabeça ovalada,
verbo de sangue
fluente

uma acácia
no centro da sala
com tampo de chuva

água, transbordante água
água desamparada
caindo na dor da calçada

um nome: ana
duas mãos, ama
envolve a nuvem
uma arma dispara
ondas de espuma

oceano descendo o céu

quarta-feira, 31 de março de 2010

wp

(null)

Este rectângulo aquoso onde derramo folhas de vento...
seventeen
as águas de Veneza estão a baixar
faltou água nas Caldas
alguém bebe descaradamente águas de Março
no último dia.

Capelas Imperfeitas II



abandono todos os dias a vida
para te devolver ao livro,
à morte límpida que te deita

boneca de pele alva
empoleirada nos tacões
da noite

uma fita no cabelo,
como naquele dia
cobrindo a flor do corpo
no saco de plástico em que
te embrulhavam pela última
vez

um celofane diáfano
revela a pele morna,
lívida, límpida,
serena

serena
é a tua noite na morgue,
num dia em que a festa
foi um pouco mais além
e alguém desenhou na tua pele
um tricot rubro de festa brava.

domingo, 28 de março de 2010

Libertação das águas

Bom dia!
A Foz (do Arelho) desliza as suas águas, agora caudalosas, encostando o dorso ao Facho a caminho da abertura Atlântica.
Era um dia de oiro resplandecente sem barcos no horizonte, só espuma desfeita na areia clara da maré baixa.
A procissão de sempre, de fim de semana, leva os transeuntes curiosos lentos, a passear-se na margem da corrente. Será para descobrirem o movimento amordaçado do rio pela lagoa secular?
As ondas espumosas coladas ao céu de pinceladas azúis-verde chumbo.
Tudo isto vejo do convés da esplanada do Bar, agora recebendo o aviso definitivo das águas furiosas deste Arelho libertado.

sábado, 27 de março de 2010

Incertezas

Não sei se me escutam do eco profundo da palavra
nem sei se ouço no fundo poço um pingo grave
que amplie o universo falso,
este meu universo falso falo embaraçado
espelhos ampliados no asfalto
e olvido o casto ouvido falado
é um sentimento profundo raso de água
estreito como o tal poço suspenso da minha
alma que conduzo calma e buzina.

Esta luz...

Diário da cidade aquosa

Embora no buraco da cabeça possua uma bala
prenhe de signos e papel pardo
embora o poço da existência pareça fundo
e a solidão uma superfície plana
sem contornos aparentes, sem forma
embora nunca regresses quando mais preciso
e partes na madrugada impossível das pombas
brancas
embora eu beba noite adentro na esperança
da luz que me cegue indolor
amo a fronteira e o desconhecido, mais ainda
que a tontura de um copo arremessado
a um estômago âmago soco despejado
embora as mãos não nos salvem a alma imolada
a suas mãos ardendo o lume nos hidrata
a pele de púrpura, a carne despida
embora não seja ainda o tempo,
embora não seja agora.