domingo, 17 de outubro de 2010

(...)

Dias a fio sem uma palavra, o silêncio imperioso dos corpos,
quando a pele se toca na pele, como um mapa de viagem
toca a manhã e se desprende uma aurora boreal,
o silêncio mortal das neves eternas, dos fiordes,
das savanas, as quilhas dos navios cruzando oceanos,
a tua pele de encontro à minha, ainda como estranhos,
somos estranhos íntimos de viagem, tacteando rotas
inseguras, somos o nascer do sol e o barco perdido,
a montanha de chumbo tecendo os dias frios nas fissuras
dos dedos, somos lençóis abandonados até que a noite regresse
para nos cobrir demoradamente de beijos.

segunda-feira, 4 de outubro de 2010

Outonal

Passeamos outono adentro como as árvores despidas,
ganha-se um tom de pele, viaja-se, só bilhete de ida,
tu olhas o ar, eu olho o mar, adereços inúteis presos
no horizonte, páginas escritas palavras em surdina,
sem mapa nem rumo certo como a rota dos pássaros,
estamos à deriva, como dantes, num grave acidente.

AS BALAS

São de ferro. Ou de aço?
Diz-se que fazem à entrada
um pequeno orifício,
seguido de uma grande
devastação de carnes
sangrentas. Por isso matam.
Li tudo sobre a morte.
Escrevi sobre a minha
e depois embebedei-me.
A bala vem pelo ar
(ruído onomatopaica) e
crava-se, cava, ceva-se
nessas carnes. Era a minha.
Tive uma bala marcada:
à última hora telefonei
a desistir. 'da-se!
Pior para o Soares que entra
nestes versos já morto.
São de ferro. A tua era,
ó Soares, ou de aço,
e "agora choro contigo"
ausente uma vila
branca do Alentejo: tu.

Diz-se que fazem assim
um pequeníssimo estúpido
orifício (não quis ver)
como um botão mas
destroem tudo, devastam
tecidos, vísceras nobres,
e então trazem até nós
a morte sanguinolenta.
Se ainda as fabricam
como no meu tempo, creio
que matam num, ah pois,
infinitésimo de segundo.
É brutal. Eu ouvi-as:
perde-se a tesão por um século.

in "A Musa Irregular", Fernando Assis Pacheco, ed. Assírio&Alvim, Novembro de 2006