quinta-feira, 25 de novembro de 2010

Herberto Helder

Retirado daqui:
Fernando Dinis: É possível ouvir isto sem comoção?

ARQUIPÉLAGO

Abre o corpo todo,
abre-te, como uma flor
sobre o oceano pálido.
Pousa o ventre
no leito volátil,
veloz.
Como sexo ornado
de morte: virás.
No precipício do tempo,
virás na vertigem,
o teu cabelo escrito,
em palavras emaranhadas,
ponte pensil elevando-se,
desenha a passagem,
desenha-te.
As pernas são pilares,
ancas perfumadas.
Ao centro do ventre: o vulcão.

terça-feira, 9 de novembro de 2010

LAR

Todos querem uma casa,
um abrigo onde aquecer
os ossos, alguns compartimentos,
água corrente e um computador
que nos prenda ao resto do mundo,
em noites frias.

E eu, que ao entrar em casa,
é como regressar ao cárcere,
entro ordeiramente como
um condenado.

A minha casa é um livro de capa dura,
que me acompanha nos dias
mais chuvosos, com janelas macias,
de palavras macias,
cobertas de lágrimas de uma chuva
copiosa e persistente.
Nesta casa serei feliz.

Mas afinal estou aqui, só,
o livro entreaberto, de janelas batendo
na madeira do tempo,
e eu chuvoso e frio, como um qualquer
inverno, puxo o sobretudo sobre
as orelhas e vagueio, como sempre
tenho feito, à procura de abrigo.

Tokyo em Lisboa

0:30 de sábado. Depois da corrida vertiginosa, o táxi deteve-se no Cais do Sodré. Descemos ao cais como lobos famintos de ritmo. O corpo possuído por todos os impulsos eléctricos da noite. As garras prestes a florir. As quatro raparigas ondulavam na sala de dança do “Tokyo Bar” como borboletas. O espaço, de paredes nuas, quase lúgubres, ficou algures suspenso dos anos oitenta do século passado. O fumo insufla-se na roupa, na pele, no suor que o ritmo segrega: Electricity, OMD; Girls on film, Duran Duran; I Ran (so far away), Flock of Seagulls; Start me up, Rolling Stones; Video killed the radio star, The Buggles; ecoavam na sala como se de uma única banda sonora se tratasse. Uma bola de espelhos rodopiava no tecto, caleidoscópica, os dançarinos de cervejas na mão, todo um universo de som e côr, como num sonho. O alcool ia desaguando na margem do rio em mais uma inevitável madrugada
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quinta-feira, 4 de novembro de 2010

RECOMEÇOS

O círculo aberto, cratera de peito,
como cicatriz volta a fechar-se,
os teus olhos nos meus,
transportam uma possibilidade,
talvez um inconsequente brilho de lua,
em agosto,
quem sabe?
quem saberá?
quando em setembro te vir,
pela primeira vez,
que é, como concebo, o começo,
e as águas se alongarem em versos,
sem fundo ou leito conhecido,
arrastando essa possibilidade
na erosão dos dias imperfeitos,
uma possibilidade arrastada
de tronco aberto no peito,
e mãos sobre as mãos
e dedos rumorejantes.

Paulo da Ponte, Novembro 2010

PAINKILLER

Encontraste a tua posição zen.
Como um prolongamento de ti que
Te esticava as pernas alvas e macias
Pregadas como um sacrilégio.

Encontraste a tua posição zen.
Como um prolongamento de ti,
Os metais disfarçados de macios lençóis
Alongavam-te as pernas alvas e picantes
Como um sacrilégio que imitava o
Sudário. Blasfemaram-te roubando-te a imagem.
Pernas juntas de sexo na minha cabeça afastadas.
Os joelhos perturbantes a adivinharem
Os teus ossos sensíveis de menino magoado.
Dores? O teu corpo e a tua face repousam num
Opaco grito de luxúria e divertimento.
O encarnado doloroso dança à tua frente enquanto
Eu te como os braços com beijos e com os olhos e
Te afago a cabeça e pouso o meu
Corpo nas tuas pernas no meu consciente
Ultrajante e sujo...
Dores? Sim, dores. Imortalizo-te.
Tu não mereces o que te faço.
O azul celeste da tua alma e a palidez
Da tua pele imaculada de mártir
Consomem-se em comprimidos.
Eu queria dar-tos todos, sim todos.
A senhora da farmácia não deixou e chamou-me
Louca viciada. Quis pregar-me ao laboratório.
Apertei-lhe o pescoço. Quis que
Ela me suplicasse para parar.
Que maravilhoso meu anjo, muitos eu trouxe...
Todos para ti, para se
Dissolverem e evaporarem nos teus
Poros puros, penetrantes e
Pacíficos, posicionados para eu te ver melhor
Para ti, para ti...
Põe, põe, põe. Isso...assim,
Mais fundo, até as cores
Se misturarem. Estados Unidos?
Esquece Nova Iorque e a pobre da rua.
Eu queria ter levado tudo até
Ao fim
E ter feito tudo o que tu quisesses,
Para não teres de escrever as agulhas.
Lindo, que magnífico...eu mereço chicotes
E grilhões por me observares suja e
Empalada castrando-te os
Sonhos e não te matando a dor
Raios vermelhos em pentagonal sina
Me furem as fontes com a sabedoria
Ancestral para eu morrer e
Vitalizar-te.
Eu quero tudo de novo para voltar atrás
E teres o que queres e merecias porque
Eu fui feita, criada e concebida
Para ti, por ti. Finalizarei a minha tarefa
Quando te me e me te der.
Dores? Enterrra-me mais e mais
Fundo, mais celestial, mais infernal,
Mais divinal.
São muitos, toma-os e passa-me
A máquina alongadora de infinito. Vou deitar-me
A teu lado, amor. Levanta-te que as
Minhas pernas ficaram presas aqui.

Sofia Santos

in "Actéon nº 1" - Revista de Expressão pessoal e artística - Jan/Fev 2008, vários autores.