sábado, 28 de agosto de 2010

CONTOS DA VIDA NORMAL

1. FAIXA DE RODAGEM

Resolvi partir para outro mundo, deixando para trás a casa e todos os objectos inúteis que por aí repousariam inanimados durantes os próximos vinte e um dias. Embora esta não fosse uma partida definitiva, sem regresso, ficava-me sempre uma sensação que qualquer destes dias a partida seria definitiva.

Viajei durante quatro horas bem medidas, as rodas assentes no asfalto, duas faixas para cada lado, aqueles que iam, como eu, aqueles que regressavam, aqueles que estavam simplesmente de passagem. No fim da estrada, quando as planícies começam a dissipar-se, a enrugar-se progressivamente e os vales que se encaixam mais fundo, surgia água por debaixo das pontes longilíneas, com colunas de betão cravadas nas encostas, ao fundo uma miragem azul, que vai tomando forma de oceano, estou a chegar, na companhia de mais alguns milhares, ao mundo que me prometeram na agência de viagens.

No banco de trás a Maria, face rosada e cabelo esvoaçando, encostada às pranchas. A meu lado o Rui, headphones na cabeça, um zunido indisfarçavel de heavy que se misturava com o som de motores.

Na rádio uma voz feminina ditava as previsões metereológicas para os próximos dias, vento e chuva fraca, lindo, não me venderam tal. Volto a mergulhar na condução, um ar quente entra pelas janelas do automóvel, amaciando o ar.

Próxima saída resolvo parar, não é ainda o destino, mas é preciso esticar as pernas, eles continuam dormindo.

Finalmente, o mar à minha frente, como que abrindo um livro de poesia pela primeira vez. Neste mundo viverei nos próximos dias, alheado da casa de persianas fechadas que ficou bem enterrada no universo das coisas inertes e distantes que me propus esquecer.


2. TOALHA DE PRAIA

As férias continuavam, tudo num ritmo tépido, sem compromissos estruturados, ao sabor do vento que soprava do norte de África.

Ao chegar à praia, pés enterrados na areia, o telefone tocara, sim Mara, logo, sessão de cinema e beber um copo ao luar, disse-lhe que sim, lá estaria, oito e meia da noite, ela com uma voz de entusiasmo um pouco estridente, aflorando no auscultador.

Estendo a toalha, não longe da água, ao fundo, sobre a pintura da nesga de mar, dois veleiros brancos, algumas gaivotas e farrapos de nuvens, sujavam o céu de agosto.

Deitado sobre a toalha, iam passando imagens na minha cabeça, sem qualquer ordem aparente, puxei o jornal e li as notícias do dia, sem interesse, ao som da dança surda das ondas.

Estariam já 32 ou 34 graus e corpo amolecia de inacção. O tempo certo para o primeiro mergulho nas águas claras do verão. Penetro na fina camada de mar, litoral, como grande batráquio e ao emergir da água, do outro lado, escorrem-me fios salgados, misturados com o cabelo desalinhado, em sintonia com as ideias caóticas da manhã.

Mara, ocasional companheira desse verão, resolvera aventurar-se nos trilhos serranos, bem cedo, ainda quando a temperatura o permitia. Gostava da sua companhia, aprendia com ela a redescobrir a amiga de infância que nunca tive.

Mergulhos de meia em meia hora e entre eles, ficar de papo para o ar esperando que o sol nos secasse a pele. Umas breves palavras pelo meio, nada de importante, uma gargalhada sonora, ocasional, um sopro de grãos de areia. As tardes passavam, até o sol atingir a nesga do horizonte pintado de mar e apagar os veleiros, por entre cores de fogo.


3. VERTIGEM NOCTURNA

Sentado no bar da praia, eu, a Mara, o António, ritmos electrónicos no ar, palmeiras, chicas, o horizonte carregado de uma luminosidade densa, misturada com alcool.

Ainda sentia o sal no corpo, o perfume de Mara entranhado no fim da tarde, o seu corpo suave encostado ao meu, a pele na pele, o toque das mãos desenhando círculos, vestígios de água. Toda a natureza dos oceanos na minha cabeça, anda dançar, diziam, e eu momentaneamente preso, imóvel naquele fim de tarde.

Levantei-me finalmente, um pouco cambaleante, em direcção à pista de dança, o som agora mais nítido, agredia os ouvidos, numa profusão de decibéis coloridos.

Mara rebolava as ancas e encostava o corpo ao meu, não devia ter bebido tanto, pensava, os círculos coloridos ascendiam do chão da dança até à bola espelhada no tecto alto, sinto mãos envolverem-me, depois o escuro.

Acordo no quarto do hospital, uma médica vociferava em tom irritado, tudo em cima de nós, e depois é só excessos, odeio o verão. É comigo, pensava, enquanto da janela do quarto da enfermaria entrava uma luz verdadeiramente excessiva, não podem correr as cortinas, isto não é um hotel, alguém de bata branca retorquia.

Corria-me nas veias o antídoto, melhor teria sido o vómito, mas a medicina tem protocolo, amansa as feras com matérias sofisticadas.


(Salema, 12 de Agosto de 2010)

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