Desses meus versos, escritos num tempo em que eu nem sabia que era poeta, brotando como a água das fontes, como a labareda brota foguetes,
precipitando-se como se fossem diabretes no santuário cheio de sonhos e de incenso, desses meus versos de juventude, versos de morte — desses meus versos que ninguém leu! —
perdidos na poeira das livrarias (onde ninguém os pede, ninguém os pediu), desses meus versos, como um vinho precioso, há-de chegar a vez.
Citadel reverberates to a thousand voices, now dumb: What have we become? What have we chosen to be? Now, all history is reduced to the syllables of our name- nothing can ever be the same: now the Immortals are here. At the time it seemed a reasonable course to harness all the force of life without the threat of death, but soon we found that boredom and inertia are not negative, but all the law we know, and dead are will and words like survival.
Arrival at immunity from all age, all fear and all end... why do I pretend? Our essence is distilled and all familiar taste is now drained, and though purity is maintained it leaves us sterile, living through the millions of years, a laugh as close as any tear; living, if you claim that all that entails is breathing, eating, defecating, screwing, drinking, spewing, sleeping, sinking ever down and down and ultimately passing away time which no longer has any meaning.
Take away the threat of death and all you're left with is a round of make-believe. Marshal every sullen breath and though you're ultimately bored by endless ecstasy it's still the ring by which you hope to be engaged to marry the girl who will give you forever- it's crazy, and plainly that simply is not enough.
What is the dullest and bluntest of pains, such that my eyes never close without feeling it there? What abject despair demands an end to all things of infinity? If we have gained, how do we now meet the cost? What have we bargained, and what have we lost? What have we relinquished, never even knowing it was there?
What thoughts now of holding fast the line, defying death and time? Everything we had is gone, everything we laboured for and favoured more than earthly things reveals the hollow ring of false hope and false deliverance.
But now the nuptial bed is made, the dowry has been paid: the toothless, haggard features of eternity now welcome me between the sheets to couple with her withered body - my wife. Hers forever, hers forever, hers forever
Quis o acaso, ou a coincidência feliz de calendário, que o lançamento da Antologia de Poesia "Poiesis XVIII", patrocinada pela Ed. Minerva, fosse realizada hoje dia 27 de Fevereiro de 2010, data do nascimento do poeta Ruy Belo, nome maior da poesia portuguesa. Nessa antologia participo com mais 52 autores, com quatro poemas. Coube-me assim a ousadia de evocar essa data com mais um instantâneo poético, rabiscado na noite anterior e que aqui vos deixo:
"HOJE É O DIA DE SER HOJE
Hoje é dia 27 e estás aqui, Os dedos pousados nas palavras como frestas Acompanhas-me no olhar vasto oceânico das vagas rolando monótonas sobre a praia
Olhei-te como sempre de perfil Os olhos misturados na distância, na errância da palavra repetida como linhas na terra desenhadas
Existe um grande rio que em mim desagua e transporta sedimentos de palavras podia ser um campo fecundo, agricultado ainda hoje nasces nos campos de Portugal.
Hoje é o dia de seres hoje, O tal futuro de que falavas, cumpriu-se: mas o solo é pobre, feito de lodo espesso, os pássaros azuis debicando a luz...
(em dedicatória ao poeta Ruy Belo na data do seu nascimento)"
Este currículo é um círculo com a cauda entre as pernas nasci no rio, na margem sul do Tejo e afoguei-me nele à nascença
Acordei no Algarve, um pouco a norte de Marrocos, apanhei muito sol na moleira moira, e comi figos debicados por pássaros de asas metálicas
esvoacei nas ondas movido a velas: triangulares perdi-me na música progressiva e na voz dos poetas nús O Aleixo despejava versos do chapéu. Voei para Lisboa, Paris e perdi-me na downtown N. York, não regressei a portugal nas roupas encharcadas de Camões. A rainha dá-me voltas à rotunda na cidade onde habito de poesia algumas horas do dia.
É no próximo dia 27 de Fevereiro - Lançamento da Antologia de poesia Poiesis XVIII, da Ed. Minerva, no Auditório Carlos Paredes em Lisboa pelas 16 horas, onde participo com quatro poemas, também incluídos em Paisagens de Papel.
Slow motion in the quiet of the room; So potent is the smell of her perfume That you think she's eternal, That you think she is everything... But no-one knows what she is.
Quando a tua vida pára e ela entra no cenário estático da sala há uma cascata de sussuros que te rondam os ouvidos, dificultando-te a respiração a sua imagem espelhada guardas na película fotográfica da memória, os gestos suaves das mãos, a folhagem desalinhada dos cabelos, o tronco aprumado na cintura adelgaçada, a pele duma brancura cintilante, porcelânica, olhos negros que guardam a arte da morte adiada - poderás então respirar o perfume dessa tarde impregnando os poros do poema que escreves.
Há um balanço na terra um odor desprende-se do arado, há um homem cultivando uma mão cheia de sal, de pó sob os meus pés um sol escorrendo na face, um oceano, uma semente no ventre: um abraço na curva cava do corpo, um amigo em cada porto, numa cidade perdida existe um poema de lume um poema de amor, uma ferida. Há poetas urdindo palavras, enquanto os deuses dançam: vazios.
Figura de proa da poesia dos anos 70, Ana Cristina César foi um nome tutelar deste período que recebera uma herança demasiado pesada: relativizar a importância dos concretos, restabelecer os valores propostos pelos modernistas e assegurar uma personalidade literária que representasse um período de transformações culturais e políticas. Esta poeta concentra em si o desejo de mudança e intensifica uma poética despojada de qualquer densidade erudita, voltando a dar importância ao discurso quotidiano e subjectivo. Nascida no Rio de Janeiro em 1952, nesta cidade ficou conhecida como uma das principais figuras a assumir uma tendência designada por alguns críticos como "poetas marginais", que se reuniram na célebre antologia de Heloísa Buarque de Holanda 26 Poetas Hoje. Contudo, Ana Cristina César distinguia-se de uma boa parte dos coetâneos. Estudou em Inglaterra, tendo-se também dedicado à tradução e a colaborações em diversas revistas e jornais literários. A sua obra foi bruscamente interrompida com o suicídio em 1983.
in Poesia Brasileira do Sec. XX, Ed. Antígona, 2002
Na cidade mourisca as ruas estreitas conduziam um rio de gente descontraída. Na praça, não muito longe do quarto onde me encontrava, havia uma estátua do Rei D. Sebastião com o elmo de guerra aos pés. Eu devia estar naquele primeiro andar percutindo as teclas da máquina de escrever. O texto ia saíndo nas horas mortas, quando o trabalho do restaurante o permitia. O princípio, ou Genesis, como quiserem, estava ali à minha frente numa meia dúzia de folhas dactilografadas. O princípio do ofício da escrita, partiu de dentro de mim numa nau das descobertas na cidade de Lagos, ou Zawaia, como quiserem. Para mim será sempre a última hipótese, pois o meu sangue árabe foi sempre se revelando cada vez mais salgado e quente confirmando essa minha afinidade filial com o norte de África. A estória ou artigo jornalístico deveria ser entregue em prazo curto ao Portugal Hoje, e daria prémio e direito a assistir ao vivo no Dramático de Cascais ao concerto de Peter Gabriel, que nessa altura tinha definitivamente abandonado os Genesis para encetar um trabalho a solo. O texto ia-me saindo directamente da cabeça para as folhas brancas de um jacto, entrecortado somente pelas tarefas no restaurante de minha tia. Estávamos em 1980, deveria ter 17 anos e escrevia sobre a odisseia de Rael nos subterrâneos de N. Iorque, obra maior do universo onírico do cantor de voz rouca dos Genesis. Sem qualquer expectativa exagerada, cumpri o prazo e enviei a carta com o texto para o jornal. Qual não foi o meu espanto passados alguns dias, na edição do Portugal Hoje seguinte lá vinha o meu texto com mais dois, os seleccionados com direito a prémio: bilhete para assistir ao vivo em Cascais ao concerto de Peter Gabriel. Nesse dia na minha cabeça ouvia-se já Here comes the flood. Há músicas que nos marcam a vida.
Chove sem ruído no prado do mar. Nas ruas sujas não passa ninguém. Do combóio desceu uma mulher sozinha: por baixo do casaco comprido viu-se a combinação clara e as pernas desaparecerem por uma porta escura.
Dir-se-ia uma aldeia submersa. O anoitecer pinga, frio, sobre as soleiras das portas, e as casas espalham na escuridão um fumo azulado. As janelas acendem-se, avermelhadas. Acende-se uma luz entre as portadas fechadas na casa às escuras.
Na manhã seguinte está frio e o sol brilha sobre o mar. Uma mulher em combinação lava os dentes na fonte e a espuma é rosada. Tem cabelos louros arruivados, semelhantes às cascas de laranja espalhadas no chão. De bruços na fonte, nota pelo canto do olho um gaiato moreno que a fita encantado. Mulheres feias abrem as portadas de par em par para a praça - os maridos dormitam ainda, no escuro.
Quando volta a noite, a chuva recomeça e crepita sobre as muitas lareiras. As esposas, ao remexerem as brasas, deitam olhares à casa às escuras e à fonte deserta. A casa tem as portadas fechadas, mas lá dentro há uma cama, e na cama uma loura ganha a vida.
Toda a aldeia descansa de noite, toda, menos a loura que se lava de manhã.
in Trabalhar cansa, Cesare Pavese, Ed. Livros Cotovia, 1997
Uma palavra dita naquela tarde significou para mim a inundação o fulgor das águas que mergulham um corpo frágil de náufrago uma palavra apenas: afundo-me desprendo-me das árvores e das suas raízes profundas cortando as amarras presas ao cais e afundo-me num oceano azul tão azul, azul cobalto, azul azul com bolhas de ar a fervilhar na alma dos peixes doirados, no fundo da minha alma azul.
Agora as palavras que dizias são mais profundas e aquosas como poços que me prendem os pulsos: que me libertam na torrente.
Vendias livros, amansando o pó nas estantes. Lias Baudelaire nas flores mergulhadas em água salgada, na fenda do oceano. Um lençol alvo tapa-te o ventre, o seio matinal. Roupas na desordem do quarto, um cheiro de plátanos espalhado nos papéis sobre a mesa. Por entre uma madeixa negra descem as palavras que ensinas sobre o papel da minha mão.
Venho aqui todas as noites. Nem sempre. A ver se estás ou estiveste há pouco. Tempo. Há. Venho, como se mais nenhum lugar houvesse para meu reconforto. Para sentir o eco das tuas ausências. Prolongadas. O toque suave das tuas palavras nos recantos imprecisos da solidão. Houve dias que esperei por ti e estavas, incompreensível e silenciosa. Estavas presente. Eu não te vi, nunca te vi ou andava demasiado distraído. Perdia-me no ar e tu voavas por entre os meus dedos. Um dia vou deixar de aqui vir. Nesse dia permanecerei ausente.
Que dizem um ao outro dois corações que se amam? Nada. Mas os nossos olhos exprimiam tudo. Digo-lhe que cinja o capote ao corpo, e ele fez-me notar que o meu cavalo se está a afastar demasiadamente do seu: cada um de nós interessa-se tanto pela vida do outro como pela sua própria; não rimos. Ele tenta sorrir-me; mas percebo que o seu rosto está marcado pelo peso das terríveis impressões nele gravadas pela meditação, constantemente debruçada sobre as esfinges que confundem, com um olhar oblíquo, as grandes angústias da inteligência dos mortais. Vendo como são inúteis as suas diligências, ele desvia os olhos, morde o seu freio terrestre com a baba da raiva, e contempla o horizonte que foge quando nos aproximamos. Tento por meu lado recordar-lhe a sua doirada juventude, que só pede entrada nos palácios dos prazeres, como uma rainha; mas ele nota que as palavras me saem dificilmente da boca emagrecida, e que também os anos da minha primavera já passaram, tristes e glaciais, como um sonho implacável que, nas mesas dos banquetes e nos leitos de cetim em que dormita a pálida sacerdotisa do amor, paga com as cintilações do ouro, passeia as amargas volúpias do desencanto, as rugas pestilentas da velhice, os sustos da solidão e os farrapos da dor.
Na praça da fruta plantaram cachos de bananas, matinais há gente apressada e loucos calmos abismados uma ambulância ensimesmada tropeça no passeio as passadeiras deslizam sob os pés dos transeuntes trôpegos um polícia acaricia um pêssego careca o marco de correio ficou vermelho de raiva indiferente a tudo um cão mija na sarjeta o poeta entra no café e escreve um poema - Na praça da fruta.
O ar rasgou-se no horizonte, traçando uma diagonal na areia da praia um pescador tece uma linha quase invisível na solidão da tarde ao longe os barcos deslizam preguiçosos
a vida naquele verão misturava-se com o cheiro forte das algas o zumbido das cigarras o pó dos caminhos a brisa azul do entardecer
No eixo do caminho havia uma ranhura fina como uma ferida através da fenda avistava-se ainda a lâmina penetrante.
o caminho é sujo, no meu peito um leve cheiro a bolor paira no ar preparo o fungicida entro no saloon peçouma bebida misturo pólvora bebo até ao fim explodem-me os ouvidos ao som de uma sinfonia de Brahms.
Longa noite, rodopia redonda nos teus olhos esse lapso de infinito, meu companheiro, Tu e eu, inseparáveis atrás das cortinas do quarto, teus olhos brilham nos meus.
Noite negra de luar, desenha a luz na luz dos teus olhos tão tristes como cabelos de crude te vejo eu tão amiúde, no cerco das horas lentas.
Longas noites e dias lentíssimos sonolência pastosa escrita na pele amálgama de ferro retorcido na alma no acidente da tarde calma.
Sou pintor de universos noctívagos e a noite devolve-me a vertigem dos teus olhos em tiros certeiros no peito perfurado da chacina.
Creio que nunca perdoarei o que me fez esta música. Eu nada sabia de poesia, de literatura, e o piano era, para mim, sem distinção entre a Viúva Alegre e Mozart, o grande futuro paralelo a tudo o que eu seria para satisfação dos meus parentes todos. Mesmo a Música, eles achavam-na demais, imprópria de um rapaz que era pretendido igual a todos eles: alto ou baixo funcionário público, civil ou militar. Eu lia muito, é certo. Lera o Ponson du Terrail, o Campos Júnior, o Verne e o Salgari, e o Eça e o Pascoaes. E lera também nuns caderninhos que me eram permitidos porque aperfeiçoavam o francês, e a Livraria Larousse editava para crianças mais novas do que eu era, a história da catedral de Ys submersa nas águas.
Um dia, no rádio Pilot da minha Avó, ouvi uma série de acordes aquáticos, que os pedais faziam pensativos, mas cujas dissonâncias eram a imagem tremulante daquelas fendas ténues que na vida, na minha e na dos outros, ou havia ou faltavam.
Foi como se as águas se me abrissem para ouvir os sinos, os cânticos, e o eco das abóbadas, e ver as altas torres sobre que as ondas glaucas se espumavam tranquilas. Nas naves povoadas de limos e de anémonas, vi que perpassavam almas penadas como as do Marão e que eu temia em todos os estalidos e cantos escuros da casa.
Ante um caderno, tentei dizer tudo isso. Mas só a música que comprei e estudei ao piano mo ensinou mas sem palavras. Escrevi. Como o vaso da China, pomposo e com dragões em relevo, que havia na sala, e que uma criada ao espanejar partiu, e dele saíram lixo e papéis velhos lá caídos, as fissuras da vida abriram-se-me para sempre, ainda que o sentido de muitas eu só entendesse mais tarde.
Submersa catedral inacessível! Como perdoarei aquele momento em que do rádio vieste, solene e vaga e grave, de sob as águas que marinhas me seriam meu destino perdido? É desta imprecisão que eu tenho ódio: nunca mais pude ser eu mesmo - esse homem parvo que, nascido do jovem tiranizado e triste, viveria tranquilamente arreliado até à morte. Passei a ser esta soma teimosa do que não existe: exigência, anseio, dúvida e gosto de impor aos outros a visão profunda, não a visão que eles fingem, mas a visão que recusam: esse lixo do mundo e papéis velhos que sai dum jarrão exótico que a criada partiu, como a catedral se iria em acordes que ficam na memória das coisas como um livro infantil de lendas de outras terras que não são a minha.
Os acordes perpassam cristalinos sob um fundo surdo que docemente ecoa. Música literata e fascinante, nojenta do que por ela em mim se fez poesia, esta desgraça impotente de actuar no mundo, e que só sabe negar-se e constranger-me a ser o que luta no vácuo de si mesmo e dos outros.
Ó catedral de sons e de água! Ó música sombria e luminosa! Ó vácua solidão tranquila! Ó agonia doce e calculada!
Ah como havia em ti, tão só prelúdio, tamanho alvorecer, por sob ou sobre as águas, de negros sóis e brancos céus nocturnos? Eu hei-de perdoar-te? Eu hei-de ouvir-te ainda? Mais uma vez eu te ouço, ou tu, perdão, me escutas?
Bach vai escavando o som num gesto de sombras num ritmo de sóis rubros um movimento de arcos nos corpos que se libertam do papel como papiros arco-botantes de pernas firmemente apoiadas no parapeito do mundo.
A escultura de terra primordial lacerando as mãos nas tardes de sal em pirâmides solares a luz secando os olhos um poço central e uma picota as queimaduras penetrantes da música de cordas suspensa na plateia carnívora.
uma rosa de vento cresce no jardim lentamente como flor açucarada no peito o coração queima como sangue incendiado em que direcção sopra a noite? terei esquecido as flores envidraçadas? terá o meu país esquecido a urgência das pessoas em listas irrespiráveis? o cadáver da liberdade vagueia pelas ruas cobertas de musgo o tejo e os barcos dormem um sono electrico
nada me ocorre dizer que faça sentido enquanto me dizes palavras de lábios rubros que esqueço nos livros que vou escrevendo nem folhas em que escrevo a ausência dos dias para me perder em ti em desalentos