quarta-feira, 28 de setembro de 2011

Esboço final

1

Retomei as letras,

Sim retomeia-as lobo feroz

(encapuçado da infância)

Arredondadas as vogais

no choro antigo de menino

em pleno esquecimento

na cidade olvidada tejo a meio

naqueles dias frequentava

as belas artes, convento de S. Francisco

até as labaredas consumirem

a geografia das colinas

um fumo espesso erguia-se

começou aí a literatura,

à força de tantos livros condenados

nos ferros retorcidos, à força

de mais calor, alguns dias,

do cimo das ruas (bairro alto) avistava o rio

espelho prateado de gaivotas.

Abandonei a cidade ainda jovem

cidade velha de quarteirões

quadrangulares, e um ou outro

vagabundo errante, uma concertina

enchendo a rua, flores de sal

quantas cidades vivem dentro de nós?

quantos verbos, a própria loucura

do silêncio, 1988 estivemos aí,

quem poderá testemunhar?

senão o soco seco de um livro.

somos transeuntes provisórios

sempre fomos assim de passadas

largas, na imperfeição canónica

do soneto.



2

a arquitectura, falar dela, dos seus contrafortes,

origem na caverna-ventre de mãe,

podemos até enamorarmo-nos disso,

ou procurar a linguagem essencial dos

pássaros

podemos no poema talvez encontrar abrigo,

fazer amigos, ler os livros antigos,

observar as águas do rio lambendo as margens,

fui ficando no cais das colunas

erguendo casas aos pilares da poesia,

os cacilheiros sulcando brumas matinais,

anos e anos contornando esquinas,

entrei em igrejas temente a deus,

tendo incendiado S. Domingos, obra

admirável do fogo de Lisboa.

A rua, aquele grande canal por onde

vai a vida deslizando, ora cheia, ora vazia,

ritmos fortes, cores fortes, frutos secos,

o sorriso da menina, calma do fim da tarde

a luz coada dos setembros,

tudo desce ao rio, flui dos balcões da cidade

rebenta na corrente, no tapete dos talvegues

cheios, plenos engrossando os líquidos

que levarão à espessura última da foz,

atrás o lodo, alguns destroços auríferos,

troncos, cabelos de fogo, carinhos breves,

interrompidos (o temporal, o temporal).

Cresci assim, nas cidades,

primeiro Portimão, Lisboa,

Veneza, Nova Iorque,

Todas atadas à força bruta

dos rios, (…)

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