quinta-feira, 29 de setembro de 2011
Último poema
não sabendo a sua posição no texto,
retorcem-se no fumo do ar, os dedos,
ardem as flores, brutas as sombras
da mnemónica, dois mais dois,
acendes-te chama-me amante
de todas as águas, no campo aberto
da terra uma árvore suspende a voz,
amplificada, de todos os pássaros,
em todos os versos da planura,
perdurarás.
quarta-feira, 28 de setembro de 2011
Esboço final
1
Retomei as letras,
Sim retomeia-as lobo feroz
(encapuçado da infância)
Arredondadas as vogais
no choro antigo de menino
em pleno esquecimento
na cidade olvidada tejo a meio
naqueles dias frequentava
as belas artes, convento de S. Francisco
até as labaredas consumirem
a geografia das colinas
um fumo espesso erguia-se
começou aí a literatura,
à força de tantos livros condenados
nos ferros retorcidos, à força
de mais calor, alguns dias,
do cimo das ruas (bairro alto) avistava o rio
espelho prateado de gaivotas.
Abandonei a cidade ainda jovem
cidade velha de quarteirões
quadrangulares, e um ou outro
vagabundo errante, uma concertina
enchendo a rua, flores de sal
quantas cidades vivem dentro de nós?
quantos verbos, a própria loucura
do silêncio, 1988 estivemos aí,
quem poderá testemunhar?
senão o soco seco de um livro.
somos transeuntes provisórios
sempre fomos assim de passadas
largas, na imperfeição canónica
do soneto.
2
a arquitectura, falar dela, dos seus contrafortes,
origem na caverna-ventre de mãe,
podemos até enamorarmo-nos disso,
ou procurar a linguagem essencial dos
pássaros
podemos no poema talvez encontrar abrigo,
fazer amigos, ler os livros antigos,
observar as águas do rio lambendo as margens,
fui ficando no cais das colunas
erguendo casas aos pilares da poesia,
os cacilheiros sulcando brumas matinais,
anos e anos contornando esquinas,
entrei em igrejas temente a deus,
tendo incendiado S. Domingos, obra
admirável do fogo de Lisboa.
A rua, aquele grande canal por onde
vai a vida deslizando, ora cheia, ora vazia,
ritmos fortes, cores fortes, frutos secos,
o sorriso da menina, calma do fim da tarde
a luz coada dos setembros,
tudo desce ao rio, flui dos balcões da cidade
rebenta na corrente, no tapete dos talvegues
cheios, plenos engrossando os líquidos
que levarão à espessura última da foz,
atrás o lodo, alguns destroços auríferos,
troncos, cabelos de fogo, carinhos breves,
interrompidos (o temporal, o temporal).
Cresci assim, nas cidades,
primeiro Portimão, Lisboa,
Veneza, Nova Iorque,
Todas atadas à força bruta
dos rios, (…)
segunda-feira, 26 de setembro de 2011
Entre duas quadras
quando o poema não surge,
dobro a folha ao meio,
mantendo a aresta livre,
equidistante do ar,
depois, deixo entrar
na alameda o arvoredo,
com as frondosas palavras,
continuo a procissão
das dobras, até que
o papel seja subtraído
ao ofício da errância.
quinta-feira, 15 de setembro de 2011
Poesia insuflável - Nota introdutória
A palavra que, da boca do poeta, nasceu para um círculo de música, envolta toda ela em pudor, ingressa depois nas relações diárias e é submetida ao comércio de todos os homens.
In Na Senda da Poesia, Ruy Belo
Poesia insuflável não é só um tecto, é o abrigo completo das intempéries da vida quotidiana. É a tenda com todos os seus dispositivos: mastros, espias, estacas, tecto e sobre-tecto, só lhe falta um chão. A terra entra abundantemente na nossa vida, a lama e seus derivados. Contra isso temos a poesia insuflável.
Sopra-se por um lado, nada acontece, então insufla-se até perdermos o fôlego, até mesmo rasgar o ar.
Contra todas as crises de valores (de ontem, de hoje), poesia insuflável é um valor certo, basta um pouco de algodão e todas as cicatrizes do ar se transformam em nuvens, e depois em espuma doce.
Poesia insuflável é feita de máquinas sussurrantes, pequenos afectos, atendedores nocturnos e janelas sobre o leito.
A luz parece manter-se acesa, mas aqui é toda uma bolha de sensações prodigiosas, até que o leitor rebente essa bolha e consiga caminhar sobre o firmamento.
Paulo da Ponte, Setembro de 2011
Até ao fim do ano de 2011, será editado este pequeno livro de poemas, intitulado "poesia insuflável", cujo lançamento será feito em edição de autor, distribuído por correio (acrescendo os correspondentes portes ao preço de capa). Aceitam-se pedidos e encomendas, nas condições a divulgar oportunamente para o e-mail: pauljcorreia.arq@gmail.com.
quinta-feira, 8 de setembro de 2011
A OITO
À Anabela
Sentei-me naquele café,
e como se fosse a primeira
vez, o inverno tinha chegado.
A oito vem sempre a primeira
água, que amaciando as ruas,
traz de novo as "suaves" raparigas,
e com a água cresce na terra
a árvore forte do outono,
com raízes nas mãos nuas
e flores secas nos cabelos.
em setembro trazes
de novo o chá aromático
e o bolo de feno
a oito, qualquer suavidade
fica aquém, muito aquém
dos setembros que
recebo de ti, todos
os dias.
Paulo da Ponte, Setembro 2011
domingo, 4 de setembro de 2011
POESIA INSUFLÁVEL (não organizada)
sábado, 3 de setembro de 2011
Poema
longo da auto-estrada (divisando
os navios sobre o porto de Leixões)
no fim da ponte à direita vira
para o centro hípico
(serpenteando a avenida tendo
por bombordo o cais)
adiante vê o forte da Senhora das Neve
salguns cem metros à frente começa
a marginal. Daí já se vê o farol
para lá dos prédios brancos
não é difícil achar lugar para estacionar.
Toca no sexto direito. Estou
sempre por aqui. Ou senão
não venhas hoje.
Faz como te apetecer.
João Luís Barreto Guimarães
in "A Parte pelo Todo" (2009)
POESIA INSUFLÁVEL (bóia não identificada)
Tentava prosseguir um caminho poético relevante,
mas havia sempre alguma ave que se intrometia
e eu, como captor eólico, ceifava, ceifava
vidas inocentes no exercício ético da palavra.
Nesses instantes de profunda criação era como se
uma cidade se interrompesse, uma rua desaguando
no beco, uma calçada incompleta, um monte de terra
resvalando em verso inclinado, no topo margaridas.
Depois havia sempre (a interromper o poema)
O som da onda, a duna ventosa entrando na casa
do poema, e os outros poetas, ora entrando ora
saindo, como vagabundos à deriva, sem código postal.
Setembro 2011
8
verão esse tempo atravessado por corpos nunca por
nome tidos esses corpos que fazem vir as lágrimas
os livros gamados por esse Chiado abaixo!
Chatices da sensibilidade! Como lhe hei-de
dizer a esse estudantinho de veterinária
a esse verão repetido deus nos guarde!
Deus deus ou quem cá anda nesse rosto mais de
corpo que de rosto nesses olhos que troco há tantos
anos sob o duque da Terceira, já não sei se é terceira
se é Saldanha, mas é duque! diz a Rita cobrindo a
mesa, das antigas, de mármore!, cobrindo a mesa de
fotografias. Ao lado o João, eu não, o outro, esse, o
dos livros gamados Chiado acima Portugal, Sá da Costa
no meio fica a Bertrand.
Bebendo ginja Cais do Sodré a tarde toda!
João Miguel Fernandes Jorge
in Actus Tragicus, ed. Presença, 1979
POESIA INSUFLÁVEL (não organizada)
À hora do lanche a rapariga da estação de serviço
empanturrava-se com ar comprimido.