Partiram todos, ninguém voltou,
apenas tu, fiel à promessa de amor,
meu último amor, viraste
o rosto e viste o céu em sangue.
A casa e a causa amaldiçoadas,
em vão tinia a canção, mais terna,
e não me atrevia a erguer os olhos
para a minha terrível estrela.
Profanaram a palavra sacra
com que falei (o meu verbo sagrado)
das enfermeiras do trinta e sete
com quem lavei o chão ensanguentado.
Arrancaram-me do filho único,
torturaram meus amigos nas masmorras,
cercaram-me com a sebe invisível
da sua vigilância organizada.
Dotaram-me de mudez, lançaram-me
um anátema perante o mundo,
deram-me a comer peçonhenta calúnia,
para beber deram-me veneno
e, levando-me à beira do abismo,
aí me deixaram ficar.
Para mim é bom, maluca da cidade,
pelas praças agónicas vaguear.
[1959]
- Anna Akhmátova, in Só O Sangue Cheira A Sangue, tradução de Nina Guerra e Filipe Guerra, ed. Assírio & Alvim
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