sábado, 13 de fevereiro de 2010

X. Tolerância

Chove sem ruído no prado do mar.
Nas ruas sujas não passa ninguém.
Do combóio desceu uma mulher sozinha:
por baixo do casaco comprido viu-se a combinação clara
e as pernas desaparecerem por uma porta escura.

Dir-se-ia uma aldeia submersa. O anoitecer
pinga, frio, sobre as soleiras das portas, e as casas
espalham na escuridão um fumo azulado. As janelas
acendem-se, avermelhadas. Acende-se uma luz
entre as portadas fechadas na casa às escuras.

Na manhã seguinte está frio e o sol brilha sobre o mar.
Uma mulher em combinação lava os dentes
na fonte e a espuma é rosada. Tem cabelos
louros arruivados, semelhantes às cascas de laranja
espalhadas no chão. De bruços na fonte, nota pelo canto do olho
um gaiato moreno que a fita encantado.
Mulheres feias abrem as portadas de par em par para a praça
- os maridos dormitam ainda, no escuro.

Quando volta a noite, a chuva recomeça
e crepita sobre as muitas lareiras. As esposas,
ao remexerem as brasas, deitam olhares à casa
às escuras e à fonte deserta. A casa
tem as portadas fechadas, mas lá dentro há uma cama,
e na cama uma loura ganha a vida.

Toda a aldeia descansa de noite,
toda, menos a loura que se lava de manhã.


in Trabalhar cansa, Cesare Pavese, Ed. Livros Cotovia, 1997


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