quarta-feira, 31 de março de 2010
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seventeen
as águas de Veneza estão a baixar
faltou água nas Caldas
alguém bebe descaradamente águas de Março
no último dia.
Capelas Imperfeitas II
abandono todos os dias a vida
para te devolver ao livro,
à morte límpida que te deita
boneca de pele alva
empoleirada nos tacões
da noite
uma fita no cabelo,
como naquele dia
cobrindo a flor do corpo
no saco de plástico em que
te embrulhavam pela última
vez
um celofane diáfano
revela a pele morna,
lívida, límpida,
serena
serena
é a tua noite na morgue,
num dia em que a festa
foi um pouco mais além
e alguém desenhou na tua pele
um tricot rubro de festa brava.
domingo, 28 de março de 2010
Libertação das águas
A Foz (do Arelho) desliza as suas águas, agora caudalosas, encostando o dorso ao Facho a caminho da abertura Atlântica.
Era um dia de oiro resplandecente sem barcos no horizonte, só espuma desfeita na areia clara da maré baixa.
A procissão de sempre, de fim de semana, leva os transeuntes curiosos lentos, a passear-se na margem da corrente. Será para descobrirem o movimento amordaçado do rio pela lagoa secular?
As ondas espumosas coladas ao céu de pinceladas azúis-verde chumbo.
Tudo isto vejo do convés da esplanada do Bar, agora recebendo o aviso definitivo das águas furiosas deste Arelho libertado.
sábado, 27 de março de 2010
Incertezas
nem sei se ouço no fundo poço um pingo grave
que amplie o universo falso,
este meu universo falso falo embaraçado
espelhos ampliados no asfalto
e olvido o casto ouvido falado
é um sentimento profundo raso de água
estreito como o tal poço suspenso da minha
alma que conduzo calma e buzina.
Diário da cidade aquosa
prenhe de signos e papel pardo
embora o poço da existência pareça fundo
e a solidão uma superfície plana
sem contornos aparentes, sem forma
embora nunca regresses quando mais preciso
e partes na madrugada impossível das pombas
brancas
embora eu beba noite adentro na esperança
da luz que me cegue indolor
amo a fronteira e o desconhecido, mais ainda
que a tontura de um copo arremessado
a um estômago âmago soco despejado
embora as mãos não nos salvem a alma imolada
a suas mãos ardendo o lume nos hidrata
a pele de púrpura, a carne despida
embora não seja ainda o tempo,
embora não seja agora.
quarta-feira, 24 de março de 2010
Margem Sul
o oceano é uma faixa azul, dum blue intenso
com periferias a perder de vista
entre cuecas e um jornal,
fim de semana esotérico de pijama
e as águas de Março entrando em Abril
que da ponte já avisto, portagem Pragal
poemas e praias e mais o Bugio.
No arrastar das horas entrando o cansaço
e a miúda do 4º esquerdo
não entra no sonho, não há vendaval.
domingo, 21 de março de 2010
21 de Março
um erro
quando do néctar das palavras
nos embebedamos todos os dias
arrumei algumas palavras
espalhadas no tecto
com o sol a pino
este erróneo dia
da palavra levantou uma poalha
de oiro que a meio da minha tarde
inundou de luz a sala do poema
terça-feira, 16 de março de 2010
O evangelho segundo...
Vivemos isolados como ilhas
num imenso arquipélago de águas
náuseas
entrou-me episódico um verme
dormente na respiração
o circo retorna à cidade,
desce-nos ao íntimo
do sangue
a mesma noite ensopa-nos
de suor até aos ossos,
magnífico cenário:
as luzes que iluminam em halos,
cavalos na força amordaçada
do oceano
rebentam-me as águas da memória
no silvo de um trompete:
jazz acre com duas pedras de gelo.
sábado, 13 de março de 2010
O meu bairro
que nem sonha que existo
no templo breve do poema
e levam a sua vida quotidiana
olhando-me com a curiosidade
pura das crianças,
tentando imaginar-me normal
nos gestos quotidianos repetidos
e em mim, quando por eles
passo a caminho da repartição,
é como se versos se libertassem
na curvatura do ar.
E a minha rua é cada vez mais
um sulco de asfalto onde derramo
as folhas impressas que irei deixar,
depois de mim.
quinta-feira, 11 de março de 2010
Círculos de ar nos teus cabelos
e vagueias comigo à luz da vela,
em salas de sono induzido
mais um xanax para levantares voo
do rectângulo da tarde
não esperes que o fio dos dias
seja condutor embriagado
abres-me o sol nas pálpebras
sonolentas
e brinco com sombras no teu peito
nos lençóis de papel, dos livros
que escrevo amarrotados
abre-se a janela e a brisa
desenha círculos de ar
nos teus cabelos.
Águas de Março dum ano qualquer
troco-te pelos outros,
por mim...
Armando Silva Carvalho
O meu amor
fecha-se comigo lá fora
antes de entrar.
No vão da escada
junta os joelhos à boca
no patamar.
Todas as noites ela me segue:
o meu amor à porta de entrada
segue os meus passos devagar.
Noite após noite,
conhece os limites
e não ousa entrar
conhece-me bem
Quando entro com uma puta
o meu amor alonga a distância
permanece lá fora silente
quase imóvel, quase mar.
Esse mar que se enrola comigo,
cada noite em que o meu amor
não me vem abraçar.
domingo, 7 de março de 2010
sábado, 6 de março de 2010
Poema de Anna Akhmátova
apenas tu, fiel à promessa de amor,
meu último amor, viraste
o rosto e viste o céu em sangue.
A casa e a causa amaldiçoadas,
em vão tinia a canção, mais terna,
e não me atrevia a erguer os olhos
para a minha terrível estrela.
Profanaram a palavra sacra
com que falei (o meu verbo sagrado)
das enfermeiras do trinta e sete
com quem lavei o chão ensanguentado.
Arrancaram-me do filho único,
torturaram meus amigos nas masmorras,
cercaram-me com a sebe invisível
da sua vigilância organizada.
Dotaram-me de mudez, lançaram-me
um anátema perante o mundo,
deram-me a comer peçonhenta calúnia,
para beber deram-me veneno
e, levando-me à beira do abismo,
aí me deixaram ficar.
Para mim é bom, maluca da cidade,
pelas praças agónicas vaguear.
[1959]
- Anna Akhmátova, in Só O Sangue Cheira A Sangue, tradução de Nina Guerra e Filipe Guerra, ed. Assírio & Alvim
(Reedição #3)
a reluzir na corda cintilante,
em torno do pescoço.
Por dentro a lentidão
do sangue coagulado.
Tapetes vermelhos,
com flores cravejadas.
A respiração no vaso do vento,
enormes nuvens, gasosas.
A adução do sangue
à ponta do sexo em crescimento:
uma punheta.
A vida toda num barco:
no porão da existência.
Raparigas em cada porto,
para a iniciação das marés.
O tirocínio do mar
como um prelúdio
de morte.
O alcool na noite fria,
ensopado nos ossos,
nas cartilagens,
no sémen.
A geminação da carne:
antecipação de gestos
de ternura.
O grito envolvendo suores
numa poesia líquida:
a iniciação das estrelas
na fenda do corpo.
Toquei-te, já não sei
se eras,
voaste quando te lia
o livro das mãos.
(...)
vagueia pelas ruas
cobertas de musgo
o Tejo e os barcos
dormem um sono
eléctrico
CENTRO DE SAÚDE
deito-me ao lado do tempo
num pacto de lentidão
a televisão emite na dobra
imperfeita da sala
nunca esperei por ningúem
no átrio da solidão
(e nela vou penetrando mais fundo)
até que a noite desça do tecto
os médicos imaculados deslizam
nos corredores com macas
alugadas a corpos débeis
de crisálida.
Poema de Elena Fanailova (1962)
e guardar coisas frágeis
no fino papel de cigarros.
(tradução do inglês de Paulo da Ponte)
in The Russian Version, Ugly Duckling Presse, Russia
(...biographical essay)
Marina Tsvetaeva
(1892-1941)
In
Scattered in bookstores, greyed by dust and time,
Unseen, unsought, unopened, and unsold,
My poems will be savored as are rarest wines -
When they are old.
To emphasize the permanence of her opinion, she added a second date and signed her answer "1913-1931." Later, she called the lines "a formula for my auctorial fate."
The next ten years, Tsvetaeva's final decade, justified her pessimism. Initially welcomed by Russian writers and readers living in emigration, she now faced exasperated editors of the ever-fewer emigre journals who judged her new poetry incomprehensible and therefore unpublishable. Her perennial lack of money lapsed into outright poverty, yet she was the sole support of her husband, daughter, and son, who lived on her public readings and private begging.
As divisions within the emigration sharpened, the emigre community in
Seen in a broader perspective, however, Tsvetaeva's art and life belie the prophesied neglect. Her earliest publications were recognized and appreciated - and first of all by other poets, that most demanding audience. Early tributes came from Valery Bryusov, Maksimilian Voloshin, and Osip Mandelshtam. Later, Boris Pasternak, Rainer Maria Rilke, and Anna Akhmatova joined the ranks of her admirers. Today, that peer recognition is sustained by the poet Joseph Brodsky, foremost among Tsvetaeva's many champions. It can even be said that Tsvetaeva has regained popular appeal: among the new waves of emigres from the Soviet Union, her life has won her as much esteem as has her work, for, in an era when so many languished in exile, and so many others capitulated to oppressors, Tsvetaeva wrote and lived as if isolation and torment were the very nectar and ambrosia of her godless, ungodly age.
Tsvetaeva is first of all a poet-lyricist, not only because the sheer volume and quality of her lyric poetry is remarkable, but also because her lyrical voice remains markedly audible in her narrative poetry, her prose, and her letters. Her lyric poems fill ten collections; the uncollected lyrics would add another, substantial volume. Her first two collections indicate their subject matter in their titles: Evening Album (Vechernii al'bom, 1910) and The Magic Lantern (Volshebnyi fonar', 1912). The poems present cameo scenes of a childhood and youth passed quietly in the nursery, study and ballroom of a professorial, middle-class home in
The full range of Tsvetaeva's talent developed quickly and made itself evident in two new collections which share the same title: Mileposts (Versty, 1921) and Mileposts: Book One (Versty, Vypusk I, 1922). Three hallmarks of Tsvetaeva's mature style emerge in the Mileposts collections. First, Tsvetaeva dates each of her poems and publishes them, with a few exceptions, in strictly chronological order. All the poems in Mileposts: Book One, for example, were written in 1916 and form a kind of diary in verse. Secondly, there are cycles of poems which fall into fairly regular chronological sequence among the single poems, evidence that certain themes sought sustained expression and variation. One such cycle, in fact, announces the theme of Mileposts: Book I as a whole--the "Poems on
The small collection entitled Separation (Razluka, 1922) indicates yet another dimension of the poet's art, for it contains Tsvetaeva's first longer verse narrative, "On a Red Steed" (Na krasnom kone). The poem can be seen as a kind of prologue to three more verse-narratives written between 1920 and 1922. All four narrative poems draw on folkloric plots, language, and iconography, and Tsvetaeva acknowledges her sources in the titles of the two very long works, The Maiden-Tsar: A Fairy-tale Poem (Tsar'-devitsa: Poema-skazka, 1922) and the poem known in English as The Swain which has the subtitle A Fairytale (Molodets: skazka, 1924). The fourth folklore-style poem is called "Byways" (Pereulochki, published in
Tsvetaeva set her collection Psyche (Psikheya, 1923) somewhat apart when she gave it the secondary title Romantika, indicating that the groupings of poems by theme, unlike their counterparts in Mileposts: Book One (and, eventually, later collections) do not have a relevant chronological sequence. The volume contains one of Tsvetaeva's best-known cycles "Insomnia" (Bessonnitsa).
The years of Revolution and civil war brought special hardships to Tsvetaeva; her husband Sergei Efron was a White Army officer and Tsvetaeva was cut off and alone in
Similar themes permeate The Ratcatcher. Subtitled "a lyrical satire," the poem is based on a well-known, 13th century German legend. Its hero is the Pied Piper of Hameln who saves a town from hordes of rats and then leads the town's children away too, in retribution for the citizens' ingratitude. As in the other folkloric narratives, The Ratcatcher's story line emerges indirectly through several speaking voices that shift from invective, to lyrical flights, to ironic understatement. Tsvetaeva's polyphony reaches its acme, both in the number of speakers - including the Piper's pipe - and the variety of tones. Varied too is the line length, ranging from three to twelve syllables, and the verbal texture with its neologisms (elsewhere relatively rare), its onomatopoeia, and its dazzling paronomasia, the central device of all Tsvetaeva's mature work.
Tsvetaeva's last ten years in emigration, from 1928 when After Russia appeared to her departure for the
The great prose decade opens with two essays that examine literature in the perspective of history and ethics: "The Poet and Time" (Poet i vremya) and "Art in the Light of Conscience" (Iskusstvo pri svete sovesti), both published in
The depth and originality of "Art in the Light of Conscience" finds a match in Tsvetaeva's two literary portraits of the period, "A Living Word about a Living Man" on the poet Voloshin (Zhivoe o zhivom, 1933) and "A Captive Spirit" on Andrei Bely (Plennyi dukh, 1934). Literary criticism too explores wholly new areas in the short essay on Goethe's and Zhukovsky's "Erlkonig" (Dva lesnykh tsarya, 1934) and in the marvellous long study "Pushkin and Pugachev" (Pushkin i Pugachev, 1937).
Tsvetaeva rightly belongs in the quartet of
"I was immediately tamed by the lyrical power of Tsvetaeva's form, which had become her very flesh and blood, which had strong lungs, had a tight, concentrated hold, which did not gasp for breath between lines but encompassed without a break in rhythm whole sequences of stanzas, developing their innate elements."
And Joseph Brodsky writes of Tsvetaeva's place in her epoch and in Russian literature:
"Represented on a graph, Tsvetaeva's work would exhibit a curve--or rather, a straight line--rising at almost a right angle because of her constant effort to raise the pitch a note higher, an idea higher (or, more precisely, an octave and a faith higher.) She always carried everything she has to say to its conceivable and expressible end. In both her poetry and her prose, nothing remains hanging or leaves a feeling of ambivalence. Tsvetaeva is the unique case in which the paramount spiritual experience of an epoch (for us, the sense of ambivalence, of contradictoriness in the nature of human existence) served not as the object of expression but as its means, by which it was transformed into the material of art."
sexta-feira, 5 de março de 2010
CONSTRUÇÃO DO POEMA
apenas a densidade do fim da tarde
uma luz ao longe domina
nada demasiado intenso ou definido
um recorte, um contraste apenas
um leve calor de fogueira
e a luz sempre retirando da escuridão
as formas indefinidas: a solidão
(de tão sozinhas quase impuras)
os versos fluem do fundo da cratera
como uma garganta seca que procura
a água: inundo-me de luz
Sempre as mãos no ventre da terra,
áridas, na busca incessante do pomo
sempre as palavras no eco oco das ondas
sempre o corpo no corpo dobrado,
de encontro à boca, à língua que anseia,
incessante a nuvem liquefeita da linguagem.
(Reedição #2)
UM DIA
um dia gostaria de desenhar a estrelaque acendes em mim
se a mão me não trair na tremura
e desse momento fazer um poema
de luz enquanto dura
e colocá-lo geometricamente
no teu peito com ternura.
segunda-feira, 1 de março de 2010
(Reedição)
De arcos alongados as tuas mãos
respiram languidas o claustro conventual
uma galeria ogival reveste de seda as coxas,
a glande entre os dentes amendoados
pronta ao disparo do coração
enquanto mais arcos se abrem nas tuas costas
arcarias de osso tenso
nervuras de arte medieval
envoltas numa saliva de sangue
murmuras orações em leve tom de cântico
gregoriano
e a glande desaparece numa maré
de neve aquecida
enquanto os arcos apontam suas setas ao céu
(6/01/10)
Poema editado originalmente em "Paisagens de papel", de forma velada
Paulo da Ponte