quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

O VÍCIO DE LER NAS GRANDES SUPERFÍCIES

I


Pedro Lima era um alto funcionário, vivia na periferia, levantando-se todos os dias às 5:30h, fazendo o trajecto de autocarro por entre o sono persistente da cidade.

Pedro é um funcionário, mas nunca funcionou bem, pensa em vez de funcionar. Pedro converteu-se em pensador, nas suas palavras. Foi dissolvendo ao longo dos anos os últimos vestígios de funcionalidade que lhe restaram na engrenagem dos ossos.

As suas horas de almoço são passadas no hipermercado, numa secção recente - a livraria - mistura de livros, bananas da colômbia e outros frutos tropicais. Agradava-lhe a Divina Comédia” aromatizada com laranja.

Pedro é o narrador único das suas histórias oníricas. A tiragem dos seus livros esgota o único exemplar disponível nas prateleiras. Os seus livros são escritos nas prateleiras em papel de embrulho.

Às 4:30h, quando acorda, com o corpo entorpecido da noite mal dormida, organiza mentalmente o dia:

Leitura matinal no autocarro do “Livro do Desassossego”, em vez do pequeno almoço; almoço no Hiper-Família retomando a leitura de “O homem sem qualidades” e por fim, projecta acabar o dia da melhor forma com a leitura de “Alice”, antecipando o jantar bem regado com água da companhia.

Numa grande superfície podemos encontrar quase tudo, especialmente as coisas sem utilidade alguma. Entramos e compramos, é assim a sociedade de consumo actual. Depois, os consultórios dos psiquiatras, mudaram-se a pouco e pouco para estes territórios férteis em pacientes psicóticos. É só entrar numa destas superfícies e observar os candidatos perfilados, ou deambulando aos círculos, aproximando-se ciclicamente da bateria das caixas sem lhes tocar.

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