domingo, 30 de janeiro de 2011
DESIRE
nenhum mal é comparável à miséria
dum emprego, com as horas escoltadas
por minutos, os minutos como lápis
afiados, rasurando dia a dia
o animoso galarim das faculdades.
A questão, uma vez mais, é recusar;
desde logo, a protecção dos que traficam
com a liberdade alheia, o conforto
de servir os mediáticos negreiros,
cuja sorte se cimenta no apelo
que dirigem ao pior de cada um.
Pois aquilo a que chamais a liberdade
a coleira do consumo para muitos,
para poucos a gestão do entreposto)
não é mais do que extorsão e propaganda,
centenária manobra de fidalgos
educados no prazer da injustiça.
in Walkmen, José Miguel Silva e Manuel de Freitas, 2007
quinta-feira, 27 de janeiro de 2011
MÃE
Mãe eles escrevem poemas.
Oh,
mãe, quanto
chão do mais estranho dá o teu fruto!
Dá esse fruto e alimenta
os que matam!
Mãe, estou
perdido.
Mãe, estamos
perdidos
...
in A Morte é uma flor, Paul Celan, Ed. Cotovia, 1998
(...)
da janela larga,
entrelaçavas os dedos,
vime fresco da manhã.
E talvez uma palavra,
um gesto, o peito aberto,
despontava na ondulante
cintilação de cabelos negros,
Mais tarde, após a longa doença
vinhas-me, plácida,
clareando em pedaços de luz.
NASCIMENTO
Sophia de Mello Breyner Andresen
O VÍCIO DE LER NAS GRANDES SUPERFÍCIES
I
Pedro Lima era um alto funcionário, vivia na periferia, levantando-se todos os dias às
Pedro é um funcionário, mas nunca funcionou bem, pensa em vez de funcionar. Pedro converteu-se em pensador, nas suas palavras. Foi dissolvendo ao longo dos anos os últimos vestígios de funcionalidade que lhe restaram na engrenagem dos ossos.
As suas horas de almoço são passadas no hipermercado, numa secção recente - a livraria - mistura de livros, bananas da colômbia e outros frutos tropicais. Agradava-lhe a “Divina Comédia” aromatizada com laranja.
Pedro é o narrador único das suas histórias oníricas. A tiragem dos seus livros esgota o único exemplar disponível nas prateleiras. Os seus livros são escritos nas prateleiras em papel de embrulho.
Às
Leitura matinal no autocarro do “Livro do Desassossego”, em vez do pequeno almoço; almoço no Hiper-Família retomando a leitura de “O homem sem qualidades” e por fim, projecta acabar o dia da melhor forma com a leitura de “Alice”, antecipando o jantar bem regado com água da companhia.
Numa grande superfície podemos encontrar quase tudo, especialmente as coisas sem utilidade alguma. Entramos e compramos, é assim a sociedade de consumo actual. Depois, os consultórios dos psiquiatras, mudaram-se a pouco e pouco para estes territórios férteis em pacientes psicóticos. É só entrar numa destas superfícies e observar os candidatos perfilados, ou deambulando aos círculos, aproximando-se ciclicamente da bateria das caixas sem lhes tocar.
quinta-feira, 20 de janeiro de 2011
RECIBOS VERDES ELECTRÓNICOS
Escorrega-se a cada passo, nos primeiros dias do ano. No norte aproveita-se para esquiar enquanto o sol rasante pinta uma cinza prateada no horizonte. Enquanto o tempo passa e os pés hesitam, a casca adquire um movimento próprio - primeiro deslizamento. A banana, meio comida, exibe agora a sua decadência de fruto mole da civilização ocidental.
A fuga é uma possibilidade. Compramos uma passagem de ida e volta até aos subúrbios da capital e amanhã aqui estaremos, com a mesma roupa de sempre, às oito da manhã, duas bananas no bolso e um livro de recibos verdes, caso a menina das finanças resolva ligar. À mesma hora de sempre.
P.S: A fuga é mesmo o melhor caminho.