sábado, 26 de junho de 2010
(...)
11 de março
definha-se texto a texto, e nunca se consegue escrever o livro desejado, morre-se com uma overdose de palavras, e nunca se escreve a não ser que se esteja viciado. morre-se, quando já não é necessário escrever seja o que for, mas o vício de escrever é ainda tão forte que o facto de já não escrever nos mantém vivos. morre-se de vez em quando, sem que se conheça exactamente a razão, morre-se sempre sozinho.
nunca fui um homem alegre, morro todos os dias, como poderia estar alegre?
sento-me e medito na busca de novas palavras. tornou-se quase inútil escrevê-las; chega-me saber que, por vezes, as encontro, e nesses momentos readquiro a certeza dalguma imortalidade.
in O medo, Al Berto, Assírio & Alvim, 2005
nunca fui um homem alegre, morro todos os dias, como poderia estar alegre?
sento-me e medito na busca de novas palavras. tornou-se quase inútil escrevê-las; chega-me saber que, por vezes, as encontro, e nesses momentos readquiro a certeza dalguma imortalidade.
in O medo, Al Berto, Assírio & Alvim, 2005
sexta-feira, 25 de junho de 2010
Na representação da noite
eu, tu e o outro em vasos comunicantes,
corpos líquidos gesticulando,
flowing free, na prateleira existem
livros estacionados em segunda fila
à beira do extermínio
livros transgressores, transgredindo
o corpo nu da palavra
tu e o outro abandonaram
este texto quase desistência
de intertextualidade
prefiro pensar que a pista de asfalto
surge velozmente por detrás
da vírgula, provocando-me
o acidente da linguagem
a escrita imprime o sulco das tuas
nas minhas mãos.
corpos líquidos gesticulando,
flowing free, na prateleira existem
livros estacionados em segunda fila
à beira do extermínio
livros transgressores, transgredindo
o corpo nu da palavra
tu e o outro abandonaram
este texto quase desistência
de intertextualidade
prefiro pensar que a pista de asfalto
surge velozmente por detrás
da vírgula, provocando-me
o acidente da linguagem
a escrita imprime o sulco das tuas
nas minhas mãos.
terça-feira, 22 de junho de 2010
Artigos de férias - Clarinet Concert (Aaron Copland)
a vida
livros com páginas amarrotadas
a bomba pra inalar
o ar
a cadeira de praia
bola de praia
carregar a areia
um peso absurdo na mala do carro
toalhas e mochila, saco-cama
ingresso na quinta dos carriços
a cabeça (não esquecer)
a piscina insuflável
a mesa de cabeceira
música para clarinete.
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férias,
outras músicas
quinta-feira, 17 de junho de 2010
(na impossibilidade feminina da tarde)
as mulheres que não toco com os dedos,
que não ouso tocar
as mulheres impossíveis
seres esbeltos como gazelas
no deserto da minha tarde
as mulheres que imaginadas,
vejo à distância de um olhar
são mais reais para outros
só para mim um rasto de impossibilidade
é nesse intangível que transporto no peito
que as mulheres são mais belas
a impossibilidade doirada das suas mãos
mergulha neste meu templo-espelho
onde as observo e quase as posso tocar
que não ouso tocar
as mulheres impossíveis
seres esbeltos como gazelas
no deserto da minha tarde
as mulheres que imaginadas,
vejo à distância de um olhar
são mais reais para outros
só para mim um rasto de impossibilidade
é nesse intangível que transporto no peito
que as mulheres são mais belas
a impossibilidade doirada das suas mãos
mergulha neste meu templo-espelho
onde as observo e quase as posso tocar
terça-feira, 8 de junho de 2010
(...)
Às vezes somos colocados no caminho dos outros para significar coisas, tantas coisas...
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palavras soltas
segunda-feira, 7 de junho de 2010
NO NÚMERO 28
No número vinte e oito da minha rua
estão presos pensamentos
entraram sem quaisquer documentos
clandestinos subindo degraus
quatro a quatro, que é um
número matematicamente sólido
tentando construir este poema de quadras
sem que a forma tropeçe na escada
no corrimão, no gato preto
na velha de bengala rodopiando,
que num tropel descendo grave
a esperava o 112 no rés-do-chão.
logo a maca morrendo morta,
a velha reanimaram de máscara,
insuflando oxigénio puro,
mais puro "seria não"!
estão presos pensamentos
entraram sem quaisquer documentos
clandestinos subindo degraus
quatro a quatro, que é um
número matematicamente sólido
tentando construir este poema de quadras
sem que a forma tropeçe na escada
no corrimão, no gato preto
na velha de bengala rodopiando,
que num tropel descendo grave
a esperava o 112 no rés-do-chão.
logo a maca morrendo morta,
a velha reanimaram de máscara,
insuflando oxigénio puro,
mais puro "seria não"!
Poesia de Gastão Cruz
Cobalto nos faróis
no azulado zinco dos cabelos
no calor ampliado das axilas
nas vértebras arando o pavimento
...
in "A Morte Percutiva" - Poesia 1961-1981, Ed. Oiro do dia, 1983
no azulado zinco dos cabelos
no calor ampliado das axilas
nas vértebras arando o pavimento
...
in "A Morte Percutiva" - Poesia 1961-1981, Ed. Oiro do dia, 1983
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Gastão Cruz
domingo, 6 de junho de 2010
[Cabelos de prata]
Chegou a Caldas.
Nos pés engrossavam-lhe bolhas, enquanto o sol a pino furava o plano inclinado da calçada. Um dia de luz excessiva estampada nas paredes da cidade.
Não conhecia ninguém completamente novo há muito tempo. Tenho amigos é certo, antigos, alguns mortos, outros desaparecidos, cheios de bolor da humidade da memória.
A Lara chegava ao café, vestida para a ocasião, um aroma de flores na roupa. Eu como sempre, com a indumentária tradicional, t-shirt, jeans e ténis all-star.
Cumprimentei-a timidamente, ela com sotaque françês confirmava o cumprimento: "avec plaisir".
Eu continuava pensando nas minhas coisas, como sou um escritor medíocre e em Shostakovich, na 5ª Sinfonia:
- Aqui tem, conforme prometido, trouxe-lhe alguma música. Toma um café?
- Sim, aceito. Sem acúcar! - disse Lara.
Recostado na cadeira metálica, quente do sol a pique, da torreira, observava as sua mãos inquietas, gesticulando por entre as palavras.
- De onde lhe vem esse sotaque, doutora?
Ela hesitou um pouco antes de responder.
- Vivi dez anos em Paris, dez longos anos "sur la Seine", histórias antigas!
- E o senhor?
- Trate-me por tu.
Voltei às minhas deambulações existenciais.
Naquele prédio completava-se a desolação da cidade, num microcosmos calmo. Cada apartamento era uma célula maligna que alastrava no corpo pesado do edifício.
No primeiro andar direito vivia uma professora de filosofia, de cabelo côr de prata, sempre desalinhado, que apesar de viver no mesmo piso que eu, nunca nos cruzámos. Mais abaixo, no rés-do-chão, vive a vizinha Anabela e o seu gato Fred. A "doutora", como eu a chamava, desafiava o equilíbrio do seu biorritmo vivendo e trabalhando de noite e dormindo de dia. No segundo andar o Pedro escutava Bach contínuo pela noite adentro, enquanto trabalhava arduamente nos seus projectos.
Havia quatro apartamentos vazios, como casulos secos, ainda por ocupar. Eram os efeitos da crise económica, dizia-se.
Havia nela uma sabedoria estranha, uma liberdade total, a ausência de regras, como quem sai de casa sem dia ou hora para chegar, um exercício de caos absoluto.
Vagueava de noite, em festas, como se a efemeridade fosse a única fundação da sua existência. E a isso dedicava todas as suas forças com sofreguidão. Nada nem ninguém lhe interessava, apenas a vacuidade branca dos dias.
A rapariga dos cabelos de prata tinha-se transformado na própria luz que se extinguirá no toque furtivo de qualquer interruptor, a qualquer instante.
Finalmente a sós com ela, nua, na escuridão, sinto as pontas espigadas dos cabelos de prata, um espigado macio, não como eu tinha imaginado.
Toco-lhe suavemente na pele e ela abraça-me, uma lágrima grossa rola nas minhas costas. Os seus lábios carnudos e quentes passeiam pelo meu peito, as mãos ligeiramente trémulas, uma tremura das noites de solidão. Deitámo-nos sobre o lençol enrugado, os corpos encaixando por entre dobras finas. Ao longe o som entorpecido de Bach dissolvia-se na escuridão, tranquilizando os seus fantasmas.
Não conhecia ninguém completamente novo há muito tempo. Tenho amigos é certo, antigos, alguns mortos, outros desaparecidos, cheios de bolor da humidade da memória.
A Lara chegava ao café, vestida para a ocasião, um aroma de flores na roupa. Eu como sempre, com a indumentária tradicional, t-shirt, jeans e ténis all-star.
Cumprimentei-a timidamente, ela com sotaque françês confirmava o cumprimento: "avec plaisir".
Eu continuava pensando nas minhas coisas, como sou um escritor medíocre e em Shostakovich, na 5ª Sinfonia:
- Aqui tem, conforme prometido, trouxe-lhe alguma música. Toma um café?
- Sim, aceito. Sem acúcar! - disse Lara.
Recostado na cadeira metálica, quente do sol a pique, da torreira, observava as sua mãos inquietas, gesticulando por entre as palavras.
- De onde lhe vem esse sotaque, doutora?
Ela hesitou um pouco antes de responder.
- Vivi dez anos em Paris, dez longos anos "sur la Seine", histórias antigas!
- E o senhor?
- Trate-me por tu.
Voltei às minhas deambulações existenciais.
Naquele prédio completava-se a desolação da cidade, num microcosmos calmo. Cada apartamento era uma célula maligna que alastrava no corpo pesado do edifício.
No primeiro andar direito vivia uma professora de filosofia, de cabelo côr de prata, sempre desalinhado, que apesar de viver no mesmo piso que eu, nunca nos cruzámos. Mais abaixo, no rés-do-chão, vive a vizinha Anabela e o seu gato Fred. A "doutora", como eu a chamava, desafiava o equilíbrio do seu biorritmo vivendo e trabalhando de noite e dormindo de dia. No segundo andar o Pedro escutava Bach contínuo pela noite adentro, enquanto trabalhava arduamente nos seus projectos.
Havia quatro apartamentos vazios, como casulos secos, ainda por ocupar. Eram os efeitos da crise económica, dizia-se.
Havia nela uma sabedoria estranha, uma liberdade total, a ausência de regras, como quem sai de casa sem dia ou hora para chegar, um exercício de caos absoluto.
Vagueava de noite, em festas, como se a efemeridade fosse a única fundação da sua existência. E a isso dedicava todas as suas forças com sofreguidão. Nada nem ninguém lhe interessava, apenas a vacuidade branca dos dias.
A rapariga dos cabelos de prata tinha-se transformado na própria luz que se extinguirá no toque furtivo de qualquer interruptor, a qualquer instante.
Finalmente a sós com ela, nua, na escuridão, sinto as pontas espigadas dos cabelos de prata, um espigado macio, não como eu tinha imaginado.
Toco-lhe suavemente na pele e ela abraça-me, uma lágrima grossa rola nas minhas costas. Os seus lábios carnudos e quentes passeiam pelo meu peito, as mãos ligeiramente trémulas, uma tremura das noites de solidão. Deitámo-nos sobre o lençol enrugado, os corpos encaixando por entre dobras finas. Ao longe o som entorpecido de Bach dissolvia-se na escuridão, tranquilizando os seus fantasmas.
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Contos da cidade
quinta-feira, 3 de junho de 2010
UM FERIADO
Repare doutora, podemos também enveredar pelo caminho da indiferença. A doutora finge que não repara em mim, que lhe sou completamente indiferente, o que sabe não é de todo o que se passa e eu, por outro lado não lhe falo, até que o silêncio ensurdeça de vez.
Ensaiaremos este bailado mecânico, até que o ar se torne pesado, demasiado pesado para respirar, até à inevitável explosão, que nos subtrairá os dedos.
Sei que não é isto que pretende, mas estamos já dentro deste corredor de incomunicabilidade, num tubo sem regresso.
Nesta altura só me resta telefonar-lhe:
- Doutora, ainda está aí?
Ensaiaremos este bailado mecânico, até que o ar se torne pesado, demasiado pesado para respirar, até à inevitável explosão, que nos subtrairá os dedos.
Sei que não é isto que pretende, mas estamos já dentro deste corredor de incomunicabilidade, num tubo sem regresso.
Nesta altura só me resta telefonar-lhe:
- Doutora, ainda está aí?
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