Nos pés engrossavam-lhe bolhas, enquanto o sol a pino furava o plano inclinado da calçada. Um dia de luz excessiva estampada nas paredes da cidade.
Não conhecia ninguém completamente novo há muito tempo. Tenho amigos é certo, antigos, alguns mortos, outros desaparecidos, cheios de bolor da humidade da memória.
A Lara chegava ao café, vestida para a ocasião, um aroma de flores na roupa. Eu como sempre, com a indumentária tradicional, t-shirt, jeans e ténis all-star.
Cumprimentei-a timidamente, ela com sotaque françês confirmava o cumprimento: "avec plaisir".
Eu continuava pensando nas minhas coisas, como sou um escritor medíocre e em Shostakovich, na 5ª Sinfonia:
- Aqui tem, conforme prometido, trouxe-lhe alguma música. Toma um café?
- Sim, aceito. Sem acúcar! - disse Lara.
Recostado na cadeira metálica, quente do sol a pique, da torreira, observava as sua mãos inquietas, gesticulando por entre as palavras.
- De onde lhe vem esse sotaque, doutora?
Ela hesitou um pouco antes de responder.
- Vivi dez anos em Paris, dez longos anos "sur la Seine", histórias antigas!
- E o senhor?
- Trate-me por tu.
Voltei às minhas deambulações existenciais.
Naquele prédio completava-se a desolação da cidade, num microcosmos calmo. Cada apartamento era uma célula maligna que alastrava no corpo pesado do edifício.
No primeiro andar direito vivia uma professora de filosofia, de cabelo côr de prata, sempre desalinhado, que apesar de viver no mesmo piso que eu, nunca nos cruzámos. Mais abaixo, no rés-do-chão, vive a vizinha Anabela e o seu gato Fred. A "doutora", como eu a chamava, desafiava o equilíbrio do seu biorritmo vivendo e trabalhando de noite e dormindo de dia. No segundo andar o Pedro escutava Bach contínuo pela noite adentro, enquanto trabalhava arduamente nos seus projectos.
Havia quatro apartamentos vazios, como casulos secos, ainda por ocupar. Eram os efeitos da crise económica, dizia-se.
Havia nela uma sabedoria estranha, uma liberdade total, a ausência de regras, como quem sai de casa sem dia ou hora para chegar, um exercício de caos absoluto.
Vagueava de noite, em festas, como se a efemeridade fosse a única fundação da sua existência. E a isso dedicava todas as suas forças com sofreguidão. Nada nem ninguém lhe interessava, apenas a vacuidade branca dos dias.
A rapariga dos cabelos de prata tinha-se transformado na própria luz que se extinguirá no toque furtivo de qualquer interruptor, a qualquer instante.
Finalmente a sós com ela, nua, na escuridão, sinto as pontas espigadas dos cabelos de prata, um espigado macio, não como eu tinha imaginado.
Toco-lhe suavemente na pele e ela abraça-me, uma lágrima grossa rola nas minhas costas. Os seus lábios carnudos e quentes passeiam pelo meu peito, as mãos ligeiramente trémulas, uma tremura das noites de solidão. Deitámo-nos sobre o lençol enrugado, os corpos encaixando por entre dobras finas. Ao longe o som entorpecido de Bach dissolvia-se na escuridão, tranquilizando os seus fantasmas.
Não conhecia ninguém completamente novo há muito tempo. Tenho amigos é certo, antigos, alguns mortos, outros desaparecidos, cheios de bolor da humidade da memória.
A Lara chegava ao café, vestida para a ocasião, um aroma de flores na roupa. Eu como sempre, com a indumentária tradicional, t-shirt, jeans e ténis all-star.
Cumprimentei-a timidamente, ela com sotaque françês confirmava o cumprimento: "avec plaisir".
Eu continuava pensando nas minhas coisas, como sou um escritor medíocre e em Shostakovich, na 5ª Sinfonia:
- Aqui tem, conforme prometido, trouxe-lhe alguma música. Toma um café?
- Sim, aceito. Sem acúcar! - disse Lara.
Recostado na cadeira metálica, quente do sol a pique, da torreira, observava as sua mãos inquietas, gesticulando por entre as palavras.
- De onde lhe vem esse sotaque, doutora?
Ela hesitou um pouco antes de responder.
- Vivi dez anos em Paris, dez longos anos "sur la Seine", histórias antigas!
- E o senhor?
- Trate-me por tu.
Voltei às minhas deambulações existenciais.
Naquele prédio completava-se a desolação da cidade, num microcosmos calmo. Cada apartamento era uma célula maligna que alastrava no corpo pesado do edifício.
No primeiro andar direito vivia uma professora de filosofia, de cabelo côr de prata, sempre desalinhado, que apesar de viver no mesmo piso que eu, nunca nos cruzámos. Mais abaixo, no rés-do-chão, vive a vizinha Anabela e o seu gato Fred. A "doutora", como eu a chamava, desafiava o equilíbrio do seu biorritmo vivendo e trabalhando de noite e dormindo de dia. No segundo andar o Pedro escutava Bach contínuo pela noite adentro, enquanto trabalhava arduamente nos seus projectos.
Havia quatro apartamentos vazios, como casulos secos, ainda por ocupar. Eram os efeitos da crise económica, dizia-se.
Havia nela uma sabedoria estranha, uma liberdade total, a ausência de regras, como quem sai de casa sem dia ou hora para chegar, um exercício de caos absoluto.
Vagueava de noite, em festas, como se a efemeridade fosse a única fundação da sua existência. E a isso dedicava todas as suas forças com sofreguidão. Nada nem ninguém lhe interessava, apenas a vacuidade branca dos dias.
A rapariga dos cabelos de prata tinha-se transformado na própria luz que se extinguirá no toque furtivo de qualquer interruptor, a qualquer instante.
Finalmente a sós com ela, nua, na escuridão, sinto as pontas espigadas dos cabelos de prata, um espigado macio, não como eu tinha imaginado.
Toco-lhe suavemente na pele e ela abraça-me, uma lágrima grossa rola nas minhas costas. Os seus lábios carnudos e quentes passeiam pelo meu peito, as mãos ligeiramente trémulas, uma tremura das noites de solidão. Deitámo-nos sobre o lençol enrugado, os corpos encaixando por entre dobras finas. Ao longe o som entorpecido de Bach dissolvia-se na escuridão, tranquilizando os seus fantasmas.
Sem comentários:
Enviar um comentário