terça-feira, 31 de agosto de 2010

Portugal contemporâneo

O mar demoliu a falésia,
e andam agora a repor
umas pedras de peito
enquanto as mansas vagas
lavam o tornezelo subido
da arriba.
Pescar numa janela alegre
peixe chumbo
e esperar a nova vaga
da fiscalização.

Manhã subentendida

Na lâmina larga da noite
enfio as horas redondas,
bebendo as esferas, alcool,
antropologia rolante.

Passara-se o mistério
do amor contrafeito,
no ar o cheiro róseo
do comércio de flores.


Esperando a abertura do dia
na inação do leito
enrolado em papel pardo
dos pés à poesia.

As dobradiças da alma
rangendo no palato,
recortando um sonho evadido
num aroma guronsan.

A brancura dos campos,
uma geada persistente
nas falanges.

Dispersos, datados de 2007

Habitas-me o corpo entranhado das palavras,
o oiro leve dos cabelos,
e todos os dias te trago no peito,
na pele, nas mãos.

*

Atravessas a lâmina fina,
Os pés plantados. O suave arco
da pele tensa, cálida.
Os dedos sulcam como arados,
a ferida da boca.
Alimentas meu corpo. Meu sexo.
Alimento.

*

Só na palavra escrita perduras,
só a urgência do sol te cega.
Se a vida cintila és um astro polar
no nosso tempo de amar.

segunda-feira, 30 de agosto de 2010

TAREFAS DEPOIS DE FÉRIAS

Primeiro, afastar as teias
de aranha e os tapumes
à entrada.
Depois, forçar levemente
o hímen sem rebentar,
para que as águas de agosto
não se espalhem em casa.

domingo, 29 de agosto de 2010

CARTAS DE VERÃO

Estou aqui escrevendo
uma carta de amor
directa ao teu centro
das férias,
ficou presa no atendedor
de chamadas,
encalhada no lodo do rio,
sempre assim me acontece,
mareante aventureiro,
das sete partidas do vento,
amarradas ao cais.

sábado, 28 de agosto de 2010

(...)

retorno à exaustiva deambulação
dos inadaptados
o lixo crescendo nos aposentos
a memória morta
preencho as paredes nuas
páginas de sangue
alguns pássaros circulando
no túnel da voz
quando tudo arde na floresta
e as tuas mãos
me envolvem num manto de cinza

FRUSTRAÇÃO

O caminho parecia-lhe fértil e verde no fundo da janela que emoldurava o perfil no carro. Ele falava e gesticulava de um modo único, com aquelas mãos de proporções equilibradas e seguras no volante. Aceitou o convite dele sem duvidar que o sim era mais do que o aceite de um convite para almoçar naquele local próximo à cidade. Era um sim a ele e a todas as suas sutis investidas. Conversaram muito para não dar espaço ao verdadeiro sentido de estarem ali, anônimos de si mesmos, sob todos os disfarces dos desejos encobertos nos assuntos. Num instante e já se encontravam na vila feito baratas tontas, sem que ela fosse objetiva quando ele perguntava sobre onde iriam. Ele queria um sinal explícito e sua hesitação cheirava a medo. Depois de alguns talvez, você é quem sabe, pode ser, foram parar naquela pousada que tinha um enorme jardim. Achavam que não queriam um quarto, iam primeiro visitar o local. Caminharam constrangidos e cautelosos pela trilha que levava ao chalé mais distante da portaria, sentaram-se em frente a um pequeno lago e permaneceram falando sem trégua naquela manhã ensolarada e incerta. Foi, então, que ela tirou os sapatos e colocou os pés na água para diminuir a tensão, dar espaço aos impulsos sensoriais e naturais de fundo que os uniram. Ele pareceu não entender o gesto, riu dos seus pés pequenos e a convidou para ir embora. O sol agora os queimava. Almoçaram num restaurante de comida sem tempero, falaram mais ainda na longa viagem de volta e se despediram com aquele até mais banal e definitivo.

in Blog "Templo de Atena" Aqui

CONTOS DA VIDA NORMAL

1. FAIXA DE RODAGEM

Resolvi partir para outro mundo, deixando para trás a casa e todos os objectos inúteis que por aí repousariam inanimados durantes os próximos vinte e um dias. Embora esta não fosse uma partida definitiva, sem regresso, ficava-me sempre uma sensação que qualquer destes dias a partida seria definitiva.

Viajei durante quatro horas bem medidas, as rodas assentes no asfalto, duas faixas para cada lado, aqueles que iam, como eu, aqueles que regressavam, aqueles que estavam simplesmente de passagem. No fim da estrada, quando as planícies começam a dissipar-se, a enrugar-se progressivamente e os vales que se encaixam mais fundo, surgia água por debaixo das pontes longilíneas, com colunas de betão cravadas nas encostas, ao fundo uma miragem azul, que vai tomando forma de oceano, estou a chegar, na companhia de mais alguns milhares, ao mundo que me prometeram na agência de viagens.

No banco de trás a Maria, face rosada e cabelo esvoaçando, encostada às pranchas. A meu lado o Rui, headphones na cabeça, um zunido indisfarçavel de heavy que se misturava com o som de motores.

Na rádio uma voz feminina ditava as previsões metereológicas para os próximos dias, vento e chuva fraca, lindo, não me venderam tal. Volto a mergulhar na condução, um ar quente entra pelas janelas do automóvel, amaciando o ar.

Próxima saída resolvo parar, não é ainda o destino, mas é preciso esticar as pernas, eles continuam dormindo.

Finalmente, o mar à minha frente, como que abrindo um livro de poesia pela primeira vez. Neste mundo viverei nos próximos dias, alheado da casa de persianas fechadas que ficou bem enterrada no universo das coisas inertes e distantes que me propus esquecer.


2. TOALHA DE PRAIA

As férias continuavam, tudo num ritmo tépido, sem compromissos estruturados, ao sabor do vento que soprava do norte de África.

Ao chegar à praia, pés enterrados na areia, o telefone tocara, sim Mara, logo, sessão de cinema e beber um copo ao luar, disse-lhe que sim, lá estaria, oito e meia da noite, ela com uma voz de entusiasmo um pouco estridente, aflorando no auscultador.

Estendo a toalha, não longe da água, ao fundo, sobre a pintura da nesga de mar, dois veleiros brancos, algumas gaivotas e farrapos de nuvens, sujavam o céu de agosto.

Deitado sobre a toalha, iam passando imagens na minha cabeça, sem qualquer ordem aparente, puxei o jornal e li as notícias do dia, sem interesse, ao som da dança surda das ondas.

Estariam já 32 ou 34 graus e corpo amolecia de inacção. O tempo certo para o primeiro mergulho nas águas claras do verão. Penetro na fina camada de mar, litoral, como grande batráquio e ao emergir da água, do outro lado, escorrem-me fios salgados, misturados com o cabelo desalinhado, em sintonia com as ideias caóticas da manhã.

Mara, ocasional companheira desse verão, resolvera aventurar-se nos trilhos serranos, bem cedo, ainda quando a temperatura o permitia. Gostava da sua companhia, aprendia com ela a redescobrir a amiga de infância que nunca tive.

Mergulhos de meia em meia hora e entre eles, ficar de papo para o ar esperando que o sol nos secasse a pele. Umas breves palavras pelo meio, nada de importante, uma gargalhada sonora, ocasional, um sopro de grãos de areia. As tardes passavam, até o sol atingir a nesga do horizonte pintado de mar e apagar os veleiros, por entre cores de fogo.


3. VERTIGEM NOCTURNA

Sentado no bar da praia, eu, a Mara, o António, ritmos electrónicos no ar, palmeiras, chicas, o horizonte carregado de uma luminosidade densa, misturada com alcool.

Ainda sentia o sal no corpo, o perfume de Mara entranhado no fim da tarde, o seu corpo suave encostado ao meu, a pele na pele, o toque das mãos desenhando círculos, vestígios de água. Toda a natureza dos oceanos na minha cabeça, anda dançar, diziam, e eu momentaneamente preso, imóvel naquele fim de tarde.

Levantei-me finalmente, um pouco cambaleante, em direcção à pista de dança, o som agora mais nítido, agredia os ouvidos, numa profusão de decibéis coloridos.

Mara rebolava as ancas e encostava o corpo ao meu, não devia ter bebido tanto, pensava, os círculos coloridos ascendiam do chão da dança até à bola espelhada no tecto alto, sinto mãos envolverem-me, depois o escuro.

Acordo no quarto do hospital, uma médica vociferava em tom irritado, tudo em cima de nós, e depois é só excessos, odeio o verão. É comigo, pensava, enquanto da janela do quarto da enfermaria entrava uma luz verdadeiramente excessiva, não podem correr as cortinas, isto não é um hotel, alguém de bata branca retorquia.

Corria-me nas veias o antídoto, melhor teria sido o vómito, mas a medicina tem protocolo, amansa as feras com matérias sofisticadas.


(Salema, 12 de Agosto de 2010)

quarta-feira, 25 de agosto de 2010

Poema entre as horas da noite

Suspendi o sono por entre as quatro ou cinco da madrugada
como premindo o pause do leitor da evidência
o dia sem claridade ainda suficiente, entrava
líquido como o bréu da cintura industrial,
enquanto os olhos bem abertos da poesia,
cintilavam aqui em cima, a escassos centímetros do beiral.

Poesia & Lda.: RUI PIRES CABRAL (2)

Poesia & Lda.: RUI PIRES CABRAL (2)

segunda-feira, 23 de agosto de 2010

ORLA MARÍTIMA

O tempo das suaves raparigas
é junto ao mar ao longo da avenida
ao sol dos solitários dias de dezembro
Tudo ali pára como nas fotografias
É a tarde de agosto o rio a música o teu rosto
alegre e jovem hoje ainda quando tudo ia mudar
És tu surges de branco pela rua antigamente
noite iluminada noite de nuvens ó melhor mulher
(E nos alpes o cansado humanista canta alegremente)
"Mundança possui tudo"? Nada muda
nem sequer o cultor dos sistemáticos cuidados
levanta a dobra da tragédia nestas brancas horas
Deus anda à beira de água calça arregaçada
como um homem se deita como um homem se levanta
Somos crianças feitas para grandes férias
pássaros pedradas de calor
atiradas ao frio em redor
pássaros compêndios de vida
e morte resumida agasalhada em asas
Ali fica o retrato destes dias
gestos e pensamentos tudo fixo
Manhã dos outros não nossa manhã
pagão solar de uma alegria calma
Da terra vem a água e da água a alma
o tempo é a maré que leva e traz
o mar às praias onde eternamente somos
Sabemos agora em que medida merecemos a vida

in O tempo das suaves raparigas e outros poemas de amor,
Ruy Belo
Assírio & Alvim, 2010, Colecção Gato Maltês

Pequeno poema de amor

Algumas vezes,
quando te olhava
no fundo dos olhos,
escrevia-te longas cartas,
que por inércia ou pudor,
foram ficando com a idade,
amareladas,
nas estantes
de um qualquer alfarrabista.

domingo, 22 de agosto de 2010

SEI BEM

Sim, sei bem
Que nunca serei alguém.

Sei de sobra
Que nunca terei uma obra.

Sei, enfim,
Que nunca saberei de mim.

Sim, mas agora,
Enquanto dura esta hora,

Este luar, estes ramos,
Esta paz em que estamos,

Deixem-me crer
O que nunca poderei ser.


Fernando Pessoa

Estou aqui deitado
num lençol de areia,
quando de repente
alguém me beija:
é o sol que me beija
a face, por entre
os teus lábios de luz.


Consolação, Ago. 2010

quarta-feira, 18 de agosto de 2010

(...)

É um retrato anguloso o que vou de ti pintando,
se as águas que turvam o olhar mo permitirem:
a maré
todo em estrutura óssea,
em altivez arqueada de galeão,
fundeada no lodo espesso do arade,
entrevendo o forte de são joão.

Pintura como esta só existe na minha cabeça,
ou aí se revelou como teus braços,
ramos fortes de figueira brava,
e o que sinto é uma incapacidade,
talvez incompetência,
de desenhar os teus contornos ósseos,
alvos, quase frágeis,
na robustez maternal de dois braços,
de árvore bem real.

terça-feira, 17 de agosto de 2010

Poema-bala

um momento antes de atingir a loucura,
imediatamente antes dela, límpida,
como uma bala negra: poesia bala,
como a fala, a voz e durante ela,
a loucura, quero eu lá saber
qual o momento exacto do disparo
na nuca, como estrofe em agonia,
caro leitor, que estais com o revólver
apontado à página, o olhar atento,
reduzindo aceleradamente o tempo
a pó,
a cabeça no pó dos livros,
importa-me lá que aí estejas, planeando
o diâmetro do orifício,
enquanto termino mais um verso
na mortalha do tempo,
amanhã regressarei com mais
uma caixa de projécteis,
espero reencontrar-te morto:
como eu.

Ontem

aqui estou, rochedo nu,
escrevendo poemas



Ontem bati de frente,
escorrendo mar
debaixo das engrenagens
retorcidas,
ficaram-me dois euros no bolso
e pequenas folhas de papel,
imaculadamente brancas
com filamentos rubros
na margem,
neles estavam as tuas mãos
pousadas, ensaiando um rabisco
de ar.

Regressei quando não queria,
eu nunca me quero,
e agora existem
trezentos e cinquenta quilómetros,
por (te) escrever.

Um poema de amor

todas as mulheres
todos os seus beijos as
diferentes maneiras de amar e
falar e exigir.

as suas orelhas todas têm
orelhas e
gargantas e vestidos
e sapatos e
automóveis e ex-
-maridos.

a maioria
das mulheres é muito
quente e lembram-me torradas
com manteiga enquanto a manteiga
se derrete
no meio.

há um certo olhar no
olhar delas: elas já foram
possuídas elas já foram
enganadas. na realidade não sei o que
fazer por
elas.

sou
uma boa picha um bom
ouvinte
mas nunca aprendi a
dançar – estava ocupado
com coisas maiores.

mas gostei das diferentes
camas
fumar cigarros
olhar para os
tectos. não era possessivo nem
injusto. Somente
um estudante.

eu sei que todas têm
pezinhos e vão descalças pelo chão enquanto
lhes vejo os tímidos cus no
escuro. sei que gostam de mim, algumas até
me amam
mas eu amo muito
poucas.

algumas dão-me laranjas e vitaminas;
outras falam baixinho da
infância dos pais e das
paisagens; algumas são quase
loucas mas nenhuma delas é sem qualquer
motivo; algumas amam
bem, outras nem por
isso; a melhor na cama nem sempre é
a melhor noutras
situações; cada uma tem o seu limite como eu
tenho os meus limites e todos
aprendemos isso
rapidamente.

todas as mulheres todas as
mulheres todos os
quartos
tapetes e
fotografias e
cortinados, é
parecido como uma igreja
só que às vezes ouvem-se
risos.

as orelhas os
braços os
cotovelos os olhos
que procuram, a ternura e
a espera eu fiquei
preso eu fiquei
preso.

versão de manuel a. domingos in Blog: O amor é um cão do inferno

segunda-feira, 16 de agosto de 2010

Anti-poema

Um grito embora vago
um som embora surdo
o vento embora frio
a noite embora bréu

o sexo embora breve
a vida embora morte
a pele embora carne

três marinheiros
monóculos
o ilhéu de luz
apagado
anti-poema
alado.

terça-feira, 3 de agosto de 2010

Poeira e música

Os festivais de verão vão a meio,
sudoeste incluído,
no talão de multibanco
escrevo um poema sem saldo,
aparentemente vazio,
alguns dígitos rememoram
a grafia distante de versos,
as gotas daquele inverno,
obliquamente impressas no papel:
a transferência foi efectuada
com sucesso.