domingo, 28 de fevereiro de 2010

Poema de Marina Tsvétaïeva



Desses meus versos, escritos num tempo
em que eu nem sabia que era poeta,
brotando como a água das fontes,
como a labareda brota foguetes,

precipitando-se como se fossem diabretes
no santuário cheio de sonhos e de incenso,
desses meus versos de juventude, versos de morte
— desses meus versos que ninguém leu! —

perdidos na poeira das livrarias
(onde ninguém os pede, ninguém os pediu),
desses meus versos, como um vinho precioso, há-de chegar a vez.


Marina Tsvétaïeva

...

chegado a casa
havia vento espalhado
pelos compartimentos
organizo o ar
lavo a loiça da véspera
e preparo uma sopa de letras
pr'ó jantar

Música de domingo - "Still life" VDGG



(Hammill)

Citadel reverberates to a thousand voices, now
dumb:
What have we become?
What have we chosen to be?
Now, all history is reduced to the syllables of
our name-
nothing can ever be the same:
now the Immortals are here.
At the time it seemed a reasonable course
to harness all the force
of life without the threat of death,
but soon we found that boredom and inertia
are not negative, but all the law we know,
and dead are will and words like survival.

Arrival at immunity from all age, all fear and
all end...
why do I pretend?
Our essence is distilled
and all familiar taste is now drained,
and though purity is maintained
it leaves us sterile,
living through the millions of years,
a laugh as close as any tear;
living, if you claim that all
that entails is breathing, eating, defecating,
screwing, drinking,
spewing, sleeping, sinking ever down and down
and ultimately passing away time
which no longer has any meaning.

Take away the threat of death and all you're
left with is a round of make-believe.
Marshal every sullen breath and though you're
ultimately bored by endless ecstasy
it's still the ring by which you hope to be
engaged
to marry the girl who will give you forever-
it's crazy, and plainly
that simply is not enough.

What is the dullest and bluntest of pains,
such that my eyes never close without feeling it
there?
What abject despair demands an end
to all things of infinity?
If we have gained, how do we now meet the
cost?
What have we bargained, and what have we
lost?
What have we relinquished, never even knowing it
was there?

What thoughts now of holding fast the line,
defying death and time?
Everything we had is gone,
everything we laboured for and favoured more
than earthly things reveals the hollow ring
of false hope and false deliverance.

But now the nuptial bed is made,
the dowry has been paid:
the toothless, haggard features of eternity
now welcome me between the sheets
to couple with her withered body - my wife.
Hers forever,
hers forever,
hers forever

Van der Graaf Generator, in "Still life" - 1976

sábado, 27 de fevereiro de 2010

VENTO

Entrou-me um vento forte na alma,
tao forte, que algumas portas
ainda permanecem abertas...

NO LANÇAMENTO DA ANTOLOGIA "POIESIS XVIII" - Auditório Carlos Paredes, Benfica

Quis o acaso, ou a coincidência feliz de calendário, que o lançamento da Antologia de Poesia "Poiesis XVIII", patrocinada pela Ed. Minerva, fosse realizada hoje dia 27 de Fevereiro de 2010, data do nascimento do poeta Ruy Belo, nome maior da poesia portuguesa. Nessa antologia participo com mais 52 autores, com quatro poemas.
Coube-me assim a ousadia de evocar essa data com mais um instantâneo poético, rabiscado na noite anterior e que aqui vos deixo:

"HOJE É O DIA DE SER HOJE

Hoje é dia 27 e estás aqui,
Os dedos pousados nas palavras como frestas
Acompanhas-me no olhar vasto oceânico
das vagas rolando monótonas sobre a praia

Olhei-te como sempre de perfil
Os olhos misturados na distância,
na errância da palavra repetida
como linhas na terra desenhadas

Existe um grande rio que em mim desagua
e transporta sedimentos de palavras
podia ser um campo fecundo, agricultado
ainda hoje nasces nos campos de Portugal.

Hoje é o dia de seres hoje,
O tal futuro de que falavas, cumpriu-se:
mas o solo é pobre, feito de lodo espesso,
os pássaros azuis debicando a luz...

(em dedicatória ao poeta Ruy Belo na data do seu nascimento)"

Paulo da Ponte

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

PEQUENO CURRÍCULO (minúsculo)

Este currículo é um círculo
com a cauda entre as pernas
nasci no rio, na margem sul do
Tejo e afoguei-me nele à nascença

Acordei no Algarve, um pouco a norte
de Marrocos, apanhei muito sol na moleira
moira, e comi figos debicados
por pássaros de asas metálicas

esvoacei nas ondas movido a velas:
triangulares
perdi-me na música progressiva
e na voz dos poetas nús
O Aleixo despejava versos do
chapéu.
Voei para Lisboa, Paris
e perdi-me na downtown
N. York,
não regressei a portugal
nas roupas encharcadas de Camões.
A rainha dá-me voltas à rotunda
na cidade onde habito de poesia
algumas horas do dia.

LANÇAMENTO DA ANTOLOGIA "POIESIS XVIII" - 27 de Fevereiro de 2010

É no próximo dia 27 de Fevereiro - Lançamento da Antologia de poesia Poiesis XVIII, da Ed. Minerva, no Auditório Carlos Paredes em Lisboa pelas 16 horas, onde participo com quatro poemas, também incluídos em Paisagens de Papel.

Paulo da Ponte

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

N. York

Lisboa

Saudade do HOT



Um dia hei-de escrever sobre a música terna das cidades como Lisboa ou Nova Iorque, quando o tempo chegar. Quando...

...Quando ela...



Slow motion in the quiet of the room;
So potent is the smell of her perfume
That you think she's eternal,
That you think she is everything...
But no-one knows what she is.


Quando a tua vida pára e ela entra
no cenário estático da sala
há uma cascata de sussuros
que te rondam os ouvidos,
dificultando-te a respiração
a sua imagem espelhada
guardas na película fotográfica
da memória, os gestos suaves
das mãos, a folhagem desalinhada
dos cabelos, o tronco aprumado
na cintura adelgaçada, a pele
duma brancura cintilante,
porcelânica, olhos negros
que guardam a arte da morte
adiada - poderás então
respirar o perfume dessa tarde
impregnando os poros do poema
que escreves.

terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

DD. Infant eyes (W. Shorter)



À Ana C. César, à música das suas palavras

Esse jazz é um rio manso e doce,
quase algodão nos olhos de uma criança,
para apaziguar a rugosa distensão dos dias

as cordas compassadas ao som do peito,
os sopros breves são a própria respiração,
o ar distendendo as arcadas ósseas da noite.

porque a noite é uma tela de sombras chinesas,
que se esfumam frágeis, voláteis.

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010

CC. Quando os deuses dançam vazios

Há um balanço na terra
um odor desprende-se
do arado,
há um homem cultivando
uma mão cheia de sal,
de pó sob os meus pés
um sol escorrendo na face,
um oceano, uma semente
no ventre: um abraço
na curva cava do corpo,
um amigo em cada porto,
numa cidade perdida
existe um poema de lume
um poema de amor,
uma ferida.
Há poetas urdindo palavras,
enquanto os deuses dançam:
vazios.

domingo, 14 de fevereiro de 2010

BB. Caleidoscópio

AA. Início de novo ciclo



Figura de proa da poesia dos anos 70, Ana Cristina César foi um nome tutelar deste período que recebera uma herança demasiado pesada: relativizar a importância dos concretos, restabelecer os valores propostos pelos modernistas e assegurar uma personalidade literária que representasse um período de transformações culturais e políticas. Esta poeta concentra em si o desejo de mudança e intensifica uma poética despojada de qualquer densidade erudita, voltando a dar importância ao discurso quotidiano e subjectivo. Nascida no Rio de Janeiro em 1952, nesta cidade ficou conhecida como uma das principais figuras a assumir uma tendência designada por alguns críticos como "poetas marginais", que se reuniram na célebre antologia de Heloísa Buarque de Holanda 26 Poetas Hoje. Contudo, Ana Cristina César distinguia-se de uma boa parte dos coetâneos. Estudou em Inglaterra, tendo-se também dedicado à tradução e a colaborações em diversas revistas e jornais literários. A sua obra foi bruscamente interrompida com o suicídio em 1983.

in Poesia Brasileira do Sec. XX, Ed. Antígona, 2002

sábado, 13 de fevereiro de 2010

Z. Fecho de mais um ciclo (até sempre)

Coloquei a máscara
no teatro quotidiano
entre mim e o mundo
existe um personagem:

o vento

Y. Rael



Na cidade mourisca as ruas estreitas conduziam um rio de gente descontraída. Na praça, não muito longe do quarto onde me encontrava, havia uma estátua do Rei D. Sebastião com o elmo de guerra aos pés. Eu devia estar naquele primeiro andar percutindo as teclas da máquina de escrever. O texto ia saíndo nas horas mortas, quando o trabalho do restaurante o permitia.
O princípio, ou Genesis, como quiserem, estava ali à minha frente numa meia dúzia de folhas dactilografadas. O princípio do ofício da escrita, partiu de dentro de mim numa nau das descobertas na cidade de Lagos, ou Zawaia, como quiserem. Para mim será sempre a última hipótese, pois o meu sangue árabe foi sempre se revelando cada vez mais salgado e quente confirmando essa minha afinidade filial com o norte de África. A estória ou artigo jornalístico deveria ser entregue em prazo curto ao Portugal Hoje, e daria prémio e direito a assistir ao vivo no Dramático de Cascais ao concerto de Peter Gabriel, que nessa altura tinha definitivamente abandonado os Genesis para encetar um trabalho a solo. O texto ia-me saindo directamente da cabeça para as folhas brancas de um jacto, entrecortado somente pelas tarefas no restaurante de minha tia. Estávamos em 1980, deveria ter 17 anos e escrevia sobre a odisseia de Rael nos subterrâneos de N. Iorque, obra maior do universo onírico do cantor de voz rouca dos Genesis. Sem qualquer expectativa exagerada, cumpri o prazo e enviei a carta com o texto para o jornal. Qual não foi o meu espanto passados alguns dias, na edição do Portugal Hoje seguinte lá vinha o meu texto com mais dois, os seleccionados com direito a prémio: bilhete para assistir ao vivo em Cascais ao concerto de Peter Gabriel. Nesse dia na minha cabeça ouvia-se já Here comes the flood. Há músicas que nos marcam a vida.

X. Tolerância

Chove sem ruído no prado do mar.
Nas ruas sujas não passa ninguém.
Do combóio desceu uma mulher sozinha:
por baixo do casaco comprido viu-se a combinação clara
e as pernas desaparecerem por uma porta escura.

Dir-se-ia uma aldeia submersa. O anoitecer
pinga, frio, sobre as soleiras das portas, e as casas
espalham na escuridão um fumo azulado. As janelas
acendem-se, avermelhadas. Acende-se uma luz
entre as portadas fechadas na casa às escuras.

Na manhã seguinte está frio e o sol brilha sobre o mar.
Uma mulher em combinação lava os dentes
na fonte e a espuma é rosada. Tem cabelos
louros arruivados, semelhantes às cascas de laranja
espalhadas no chão. De bruços na fonte, nota pelo canto do olho
um gaiato moreno que a fita encantado.
Mulheres feias abrem as portadas de par em par para a praça
- os maridos dormitam ainda, no escuro.

Quando volta a noite, a chuva recomeça
e crepita sobre as muitas lareiras. As esposas,
ao remexerem as brasas, deitam olhares à casa
às escuras e à fonte deserta. A casa
tem as portadas fechadas, mas lá dentro há uma cama,
e na cama uma loura ganha a vida.

Toda a aldeia descansa de noite,
toda, menos a loura que se lava de manhã.


in Trabalhar cansa, Cesare Pavese, Ed. Livros Cotovia, 1997


V. As horas

U. (comunicação interrompida)



Uma palavra dita naquela tarde
significou para mim a inundação
o fulgor das águas que mergulham
um corpo frágil de náufrago
uma palavra apenas: afundo-me
desprendo-me das árvores
e das suas raízes profundas
cortando as amarras presas ao cais
e afundo-me num oceano azul
tão azul, azul cobalto, azul azul
com bolhas de ar a fervilhar
na alma dos peixes doirados,
no fundo da minha alma azul.

Agora as palavras que dizias
são mais profundas e aquosas
como poços que me prendem
os pulsos:
que me libertam na torrente.

T. Café literário

Vendias livros,
amansando o pó
nas estantes.
Lias Baudelaire
nas flores mergulhadas
em água salgada,
na fenda do oceano.
Um lençol alvo
tapa-te o ventre,
o seio matinal.
Roupas na desordem
do quarto, um cheiro
de plátanos espalhado
nos papéis sobre a mesa.
Por entre uma madeixa negra
descem as palavras que ensinas
sobre o papel da minha mão.

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

S. Aqui é um lugar indefinido

Venho aqui todas as noites. Nem sempre. A ver se estás ou estiveste há pouco. Tempo. Há. Venho, como se mais nenhum lugar houvesse para meu reconforto. Para sentir o eco das tuas ausências. Prolongadas. O toque suave das tuas palavras nos recantos imprecisos da solidão. Houve dias que esperei por ti e estavas, incompreensível e silenciosa. Estavas presente. Eu não te vi, nunca te vi ou andava demasiado distraído. Perdia-me no ar e tu voavas por entre os meus dedos. Um dia vou deixar de aqui vir. Nesse dia permanecerei ausente.

terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

R. Maldoror

(…)

Que dizem um ao outro dois corações que se amam? Nada. Mas os nossos olhos exprimiam tudo. Digo-lhe que cinja o capote ao corpo, e ele fez-me notar que o meu cavalo se está a afastar demasiadamente do seu: cada um de nós interessa-se tanto pela vida do outro como pela sua própria; não rimos. Ele tenta sorrir-me; mas percebo que o seu rosto está marcado pelo peso das terríveis impressões nele gravadas pela meditação, constantemente debruçada sobre as esfinges que confundem, com um olhar oblíquo, as grandes angústias da inteligência dos mortais. Vendo como são inúteis as suas diligências, ele desvia os olhos, morde o seu freio terrestre com a baba da raiva, e contempla o horizonte que foge quando nos aproximamos. Tento por meu lado recordar-lhe a sua doirada juventude, que só pede entrada nos palácios dos prazeres, como uma rainha; mas ele nota que as palavras me saem dificilmente da boca emagrecida, e que também os anos da minha primavera já passaram, tristes e glaciais, como um sonho implacável que, nas mesas dos banquetes e nos leitos de cetim em que dormita a pálida sacerdotisa do amor, paga com as cintilações do ouro, passeia as amargas volúpias do desencanto, as rugas pestilentas da velhice, os sustos da solidão e os farrapos da dor.

(…) Aqui

isidore ducasse
conde de lautréamont
cantos de maldoror
canto terceiro
trad. pedro tamen
fenda
1988

Q. Praça da fruta

Na praça da fruta plantaram cachos de bananas,
matinais
há gente apressada e loucos calmos
abismados
uma ambulância ensimesmada tropeça no passeio
as passadeiras deslizam sob os pés dos transeuntes
trôpegos
um polícia acaricia um pêssego careca
o marco de correio ficou vermelho de raiva
indiferente a tudo um cão mija na sarjeta
o poeta entra no café e escreve um poema
- Na praça da fruta.

sábado, 6 de fevereiro de 2010

P. Recomeços #2

O ar rasgou-se no horizonte,
traçando uma diagonal
na areia da praia
um pescador tece uma linha
quase invisível
na solidão da tarde
ao longe os barcos
deslizam preguiçosos

a vida naquele verão
misturava-se com
o cheiro forte das algas
o zumbido das cigarras
o pó dos caminhos
a brisa azul do entardecer

o ar rasgou-se
e as palavras
fluiram no ar

O. Recomeços #1

No eixo do caminho
havia uma ranhura
fina como uma ferida
através da fenda
avistava-se ainda
a lâmina penetrante.

o caminho é sujo,
no meu peito
um leve cheiro
a bolor paira no ar
preparo o fungicida
entro no saloon
peço uma bebida
misturo pólvora
bebo até ao fim
explodem-me
os ouvidos ao
som de uma sinfonia
de Brahms.

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

N. 3:16

Longa noite, rodopia redonda nos teus olhos
esse lapso de infinito, meu companheiro,
Tu e eu, inseparáveis atrás das cortinas
do quarto, teus olhos brilham nos meus.

Noite negra de luar, desenha a luz
na luz dos teus olhos tão tristes
como cabelos de crude te vejo eu
tão amiúde, no cerco das horas lentas.

Longas noites e dias lentíssimos
sonolência pastosa escrita na pele
amálgama de ferro retorcido na alma
no acidente da tarde calma.

Sou pintor de universos noctívagos
e a noite devolve-me a vertigem
dos teus olhos em tiros certeiros
no peito perfurado da chacina.

M. La Cathédrale Engloutie




"La Cathédrale engloutie", de Debussy


Creio que nunca perdoarei o que me fez esta música.
Eu nada sabia de poesia, de literatura, e o piano
era, para mim, sem distinção entre a Viúva Alegre e Mozart,
o grande futuro paralelo a tudo o que eu seria
para satisfação dos meus parentes todos. Mesmo a Música,
eles achavam-na demais, imprópria de um rapaz
que era pretendido igual a todos eles:
alto ou baixo funcionário público,
civil ou militar. Eu lia muito, é certo. Lera
o Ponson du Terrail, o Campos Júnior, o Verne e o Salgari,
e o Eça e o Pascoaes. E lera também
nuns caderninhos que me eram permitidos
porque aperfeiçoavam o francês,
e a Livraria Larousse editava para crianças mais novas
do que eu era,
a história da catedral de Ys submersa nas águas.

Um dia, no rádio Pilot da minha Avó, ouvi
uma série de acordes aquáticos, que os pedais faziam pensativos,
mas cujas dissonâncias eram a imagem tremulante
daquelas fendas ténues que na vida,
na minha e na dos outros, ou havia ou faltavam.

Foi como se as águas se me abrissem para ouvir os sinos,
os cânticos, e o eco das abóbadas, e ver as altas torres
sobre que as ondas glaucas se espumavam tranquilas.
Nas naves povoadas de limos e de anémonas, vi que perpassavam
almas penadas como as do Marão e que eu temia
em todos os estalidos e cantos escuros da casa.

Ante um caderno, tentei dizer tudo isso. Mas
só a música que comprei e estudei ao piano mo ensinou
mas sem palavras. Escrevi. Como o vaso da China,
pomposo e com dragões em relevo, que havia na sala,
e que uma criada ao espanejar partiu,
e dele saíram lixo e papéis velhos lá caídos,
as fissuras da vida abriram-se-me para sempre,
ainda que o sentido de muitas eu só entendesse mais tarde.

Submersa catedral inacessível! Como perdoarei
aquele momento em que do rádio vieste,
solene e vaga e grave, de sob as águas que
marinhas me seriam meu destino perdido?
É desta imprecisão que eu tenho ódio:
nunca mais pude ser eu mesmo - esse homem parvo
que, nascido do jovem tiranizado e triste,
viveria tranquilamente arreliado até à morte.
Passei a ser esta soma teimosa do que não existe:
exigência, anseio, dúvida e gosto
de impor aos outros a visão profunda,
não a visão que eles fingem,
mas a visão que recusam:
esse lixo do mundo e papéis velhos
que sai dum jarrão exótico que a criada partiu,
como a catedral se iria em acordes que ficam
na memória das coisas como um livro infantil
de lendas de outras terras que não são a minha.

Os acordes perpassam cristalinos sob um fundo surdo
que docemente ecoa. Música literata e fascinante,
nojenta do que por ela em mim se fez poesia,
esta desgraça impotente de actuar no mundo,
e que só sabe negar-se e constranger-me a ser
o que luta no vácuo de si mesmo e dos outros.

Ó catedral de sons e de água! Ó música
sombria e luminosa! Ó vácua solidão
tranquila! Ó agonia doce e calculada!

Ah como havia em ti, tão só prelúdio,
tamanho alvorecer, por sob ou sobre as águas,
de negros sóis e brancos céus nocturnos?
Eu hei-de perdoar-te? Eu hei-de ouvir-te ainda?
Mais uma vez eu te ouço, ou tu, perdão, me escutas?

in Arte de Música, 1968
Jorge de Sena

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

L. Aria

K. ( )

Bach vai escavando o som
num gesto de sombras
num ritmo de sóis rubros
um movimento de arcos
nos corpos que se libertam
do papel como papiros
arco-botantes de pernas
firmemente apoiadas
no parapeito do mundo.

A escultura de terra primordial
lacerando as mãos nas tardes
de sal em pirâmides solares
a luz secando os olhos
um poço central e uma picota
as queimaduras penetrantes
da música de cordas
suspensa na plateia carnívora.

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

J. 2010 - dia trinta e quatro

uma rosa de vento cresce no jardim
lentamente como flor açucarada
no peito o coração queima como
sangue incendiado
em que direcção sopra a noite?
terei esquecido as flores envidraçadas?
terá o meu país esquecido a urgência
das pessoas em listas irrespiráveis?
o cadáver da liberdade vagueia
pelas ruas cobertas de musgo
o tejo e os barcos dormem
um sono electrico

nada me ocorre dizer que faça sentido
enquanto me dizes palavras de lábios rubros
que esqueço nos livros que vou escrevendo
nem folhas em que escrevo a ausência dos dias
para me perder em ti em desalentos